A palavra crossover é comumente ligada a eventos, sejam eles de cinema, literários, séries de televisão, e, principalmente, quadrinhos. Normalmente utilizada para grandes sagas que colocam em interação personagens do mesmo universo ou então que misturam mundos fictícios como Marvel e DC, o crossover usualmente antecede o épico. E quem melhor para fazer o épico em quadrinhos atuais do que o megalomaníaco Donny Cates? Atual celebridade da linha editorial da Marvel se mantendo à frente de personagens como Thor, Doutor Estranho e Venom, além de grandes eventos/sagas como Carnificina Absoluta e Rei das Trevas, o escritor americano se tornou um verdadeiro popstar da Nona Arte, e acredito que suas obras independentes são ainda mais interessantes que o cash-in super-heróico, como em Redneck, God Country e, o tema desta crítica, Crossover, uma recente HQ de Cates e seu parceiro Geoff Shaw para a maravilhosa editora Image Comics.
Assim como o título diz, o quadrinho é sobre, bem, um crossover, mas com um diferencial: Cates mistura a ficção com a “realidade”, ao trazer, sem grande explicação até o momento, personagens de HQ’s para o mundo real da obra, desencadeando caos, guerras e, claro, o épico. O artifício de criar uma narrativa metalinguística em quadrinhos não é lá uma grande novidade, mas Cates propõe, logo no início da primeira edição, um questionamento em torno do alcance da ficção, e se, por exemplo, um personagem como Superman não é mais real do que eu e você, não no campo físico, obviamente, mas no sentido de permanência.
O autor não desenvolve a resposta, mantendo o inicial questionamento como algo mais filosófico do que elemento a ser debatido, mas é interessante como ele cria seu universo em torno desta pergunta no campo da morte da ficção ao misturar os dois mundos. Existe até alguns confrontos morais como “ainda se pode comprar HQ’s?”, afinal, a chegada desses personagens trouxe um número incalculável de mortes civis, ou então “deve-se tratá-los como pessoas ou objetos?”, algo que Cates desenvolve com afinco ao deslocar cidadãos comuns dos quadrinhos para o “nosso” mundo. O autor até cria alguns núcleos críticos ao falar sobre campos de concentração e trazer o dogma e o fanatismo religioso como conflito midiático, ainda que mais apresentados do que desenvolvidos ao longo do primeiro volume.
Note que quase não citei a narrativa mais direta da obra, certo? Isso é interessante, pois apesar da construção de mundo e a metalinguagem se tornarem o grande atrativo do discurso ficção/real, Cates concebe uma HQ intimista, buscando o intrínseco no escopo da premissa, e, aqui, o autor, ao mesmo tempo que subverte o leitor ao propor uma trama mais, digamos, trivial, peca no desenrolar dos arcos de seus personagens principais: Ellie, uma funcionária de loja de quadrinhos que “perdeu” seu pais – sem spoilers, se quiser entender as aspas, leia a HQ -, que busca na condenada Nona Arte um meio de escapismo; e também Ryan, o filho de um pregador fanático que reluta em seguir o discurso odioso de seu pai.
Acredito que os personagens têm arcos realmente interessantes, mas Cates demonstra dificuldade em destrinchar qualquer tipo de construção dramática pessoal. Ele continuamente diz que é uma história humana, de amor e sobre a dupla protagonista, mas a narrativa acaba sendo… genérica. Não sei nem se é a palavra completamente correta a se usar, mas minha experiência com a jornada da dupla foi bastante inexpressiva, pois Cates fala de romance, luto, remorso e empatia, mas aprofunda-se bem pouco nesses campos, e a pessoalidade torna-se deslocada, desinteressante. Mas numa nota positiva, o volume tem um curioso cliffhanger com bastante potencial de enriquecimento da dramaticidade em torno de Ellie e Ryan, e ao pensarmos que estamos no primeiro volume, Cates tem tempo e espaço para evoluir a conexão personalíssima que tanto parece prezar como cerne do seu grande evento.
Dito isso, a grande força de Crossover está na construção de mundo e atmosfera de leitura através da metalinguagem e das referências. É uma diversão megalomaníaca passar os painéis de Shaw com várias piscadelas para outros quadrinhos, esquematizando o referencial com um background hercúleo por sua limitação de personagens a serem usados sem que a equipe criativa seja processada, mas ainda fazendo um belíssimo exercício de detalhe no crossover, como por exemplo nas citações de Frederick Wertham ou formas de desenhar os personagens, com uma pegada Archie, às vezes de caricatura, em outros momentos realista, dando um tom de singularidade nas expressões de personagens famosos – temos vários! – sem perder a identidade visual da obra e cair num sketch geral. E as cores de Dee Cunniffe se encaixam perfeitamente na proposta da mistura enquanto unidade, onde o colorista cria dois esquemas: um para os dias modernos e outro mais cartunesco e explosivo, dando um ótimo contraste dos dois mundos. E acima de tudo, temos o roteiro de Cates, que sim tem problemas no ritmo e desenvolvimento da narrativa objetiva, mas que assume um maravilhoso exercício com o leitor de dar uma longa olhada na Nona Arte, seus personagens e o efeito que esse meio teve sobre nós como cultura, povo e no âmbito mercadológico, abordando principalmente o poder de permanência do fictício e contemplando nossa mortalidade frente a personagens que amamos. E aí, quem é mais real?
Crossover – Vol. 1: Crianças Amam Correntes (Crossover – Vol. 1: Kids Love Chains) – EUA, 2021
Contendo: Crossover #1 a 6
Roteiro: Donny Cates
Arte: Geoff Shaw
Cores: Dee Cunniffe
Letras: John J. Hill
Editora original: Image Comics
Data original de publicação: 26 de maio de 2021
183 páginas