O período natalino é uma comemoração muito presente na literatura brasileira. Contos, crônicas e poemas de autores diversos já apresentaram, por meio do humor ou da tragédia, perspectivas distintas de personagens envoltos nas mais variadas situações ao longo da época considerada “mágica” no calendário anual. Natal, para muitos, é uma era de reconciliação, reencontros, retomada de decisões, uma comemoração que promove a arte do encontro. Tais encontros, por sua vez, são também permeados por momentos de infelicidade e amargura, não apenas por festejos hipócritas de pessoas que se odeiam, mas forçam a barra para a unificação, tudo em prol da tradição. É nesta arena de ambiguidades que os textos de Crônicas de Natal: Grandes Autores Brasileiros se apresentam ao leitor. Com publicações de João Ubaldo Ribeiro, Ignácio de Loyola Brandão, Letícia Wierzchowski, Lourenço Diaféria, Luís Fernando Veríssimo, Marcelo Rubens Paiva, Mario Prata, Moacyr Scliar e Nélida Piñon, neste livro encontramos uma coletânea de textos que não são em sua totalidade crônicas, alguns mais para o gênero conto, outros ensaio, mas todos voltados ao painel de representações dos festejos natalinos.
Confesso que apesar de reconhecer João Ubaldo Ribeiro como um grandioso escritor, afinal, Viva o Povo Brasileiro foi uma das leituras mais impactantes em minha jornada na área base de minha formação, Letras, não me identifico muito com a sua escrita em crônicas e contos. Acho um pouco caótica, tediosa, aglomerada demais, um pecado que confesso para você, caro leitor, mesmo que isso seja considerado uma afronta. Natal é época de muita hipocrisia, então, tal como alguns dos textos desta coletânea, decidi jogar pra cima tudo isso e assumir meu ponto de vista como algo a ser respeitado enquanto cidadão pensante. Em sua contribuição, temos Jingobel, Jingobel: Uma História de Natal, um dos mais longos do conjunto, acumulação de relatos com vozes distintas sobre as mais diversas maneiras de encarar o período natalino. Ele é antecedido por Mistério na Noite de Natal, de Ignácio de Loyola Brandão, narrativa enxuta sobre as idas e vindas de uma mulher em um centro urbano, durante a tal noite de comemorações.
No belíssimo Pequena Proeza Natalina, de Letícia Wierzchowski, somos apresentados ao panorama de memórias da narradora sobre os períodos natalinos com o seu pai. Os presentes, a dedicação de um homem com uma casa repleta de filhas, situação que o tornou um mestre na arte de brincar de bonecas, ser o cliente do restaurante fictício organizado pela mesma, dentre outras jornadas de um ambiente familiar positivo, representado com muita emoção nas descrições da autora. Isso inclui, lógico, os festejos natalinos. Uma época sagrada para o patriarca que, numa época de dificuldades, vendeu o seu carro, trocando-o por um modelo mais simples, tudo isso, para manter a aura natalina em casa e permitir que todos pudessem ter a tradicional árvore e os presentes. Para os desavisados, destaco: apesar de parecer uma reverência ao consumismo, não é: o texto é uma linda abordagem sobre amar algo e transformar isso em um propósito. Há nuances que deixam isso bastante delineado pela autora.
Em Minha Noite Feliz, de Lourenço Diaféria, o sarcasmo domina a ambientação da história sobre um homem que toma uma garrafa de vinho branco e outra de vinho verde, indo ao encontro de um amigo. O problema é que, ao ter passado o endereço incorreto, esta figura ficcional apenas mencionada, mas não participante ativa do texto, transforma a jornada do narrador numa odisseia de encontros e desencontros, com referências constantes aos percalços geográficos enfrentados pelo personagem para chegar ao destino previamente estabelecido. Interessante observar a forma como o autor descreve os festejos natalinos alheios, observados por alguém que saiu para ser contemplado pela magia natalina, mas acabou comemorando a data sem companhia. Ademais, em sua abordagem, Lourenço Diaféria retrata os percalços da falta de uma boa comunicação e da empatia, algo que podemos ver de relance no divertido, coeso e sucinto Os Cheiros do Natal, do talentoso cronista Luís Fernando Veríssimo, uma história repleta de humor sobre as obrigatoriedades do período natalino em um lar tomado pelo caos.
O mesmo tom do texto de Letícia Wierzchowski é encontrado no emocionante relato memorialístico de Marcelo Rubens Paiva em A Memória Fica. Foi um dos textos encerrados com lágrimas do leitor que analisa esta coletânea. O narrador traz experiências sobre dignidade humana, isto é, a importância não apenas do período natalino, mas do conforto e bem-estar em todas as etapas de nossas vidas. Ao viajar no tempo, ele rememora as idas para a fazenda na infância, a relação com avô, pai, tios e primos, as brincadeiras numa era prévia ao advento da vertiginosa tecnologia que em tese deveria nos unir, mas que na realidade tem nos separado cada vez mais, dentre diversas outras questões sobre a importância da socialização. Em um tom de luto, o desfecho caminha por um viés entristecido ao retratar a época natalina em que a sua família foi solapada por algo que ele chama de punição dos deuses: em um mesmo ano, seu avô, seu pai e o tio mais velho faleceram, presenças ilustres que deixaram muitas saudades, potencializadas neste período onde os encontros eram garantidos. Nas últimas linhas, reforça e nos emociona, ao dizer que “não existe força no universo que elimine a memória”, pois “lembrar não tem preço”. De longe, o texto mais emotivo e sincero da coletânea.
É Natal? Rabugento, o narrador da contribuição de Mario Prata para o livro deixa delineado, em passagens bastante objetivas, a sua ojeriza ao Natal. Ele simplesmente detesta o período. Os motivos, descritor no tom de humor e revolta, são os mais variados: as festas sem noção de empresas onde a hipocrisia se instala e colegas que sequer se respeitam trocam presentes nos amigos secretos, a obrigatoriedade dos presentes, algo que deveria ser mais espontâneo, a prática de enxertar objetos de algodão para simbolizar a neve, num território onde o clima, as vezes, alcança os escaldantes 40 graus. Risível e de fácil identificação para os leitores, pois por mais que amemos o período natalino, entendemos que muitas tradições estrangeiras não se encaixam bem por aqui, em suas poucas linhas, o texto consegue estabelecer com humor e sagacidade, uma crítica aos festejos de dezembro, num tom muito parecido com o estilo de crônica adotado por Luís Fernando Veríssimo e Carlos Drummond de Andrade.
De todos os textos da coletânea, Os Muitos Natais do Brasil, de Moacyr Scliar, é um dos mais distanciados dos padrões adotados pelo editorial. É crônica? Se for, confesso que percebi no desenvolvimento um estilo mais ensaístico. O hibridismo permitido no âmbito da produção literária. Em seu texto, muito bem escrito, como de costume, o autor radiografa panoramicamente a história da diversidade natalina no Brasil, indo do século XX, passando brevemente pela relação dos ritos com as pessoas em situação de escravidão, flertando com uma crítica humorada ao nosso esquema de importação da semiótica natalina estrangeira, em detrimento dos nossos valores culturais. A neve, dentre outras simbologias da época, jamais coadunam com a nossa realidade, mas no geral, é a globalização e os seus efeitos, não é mesmo? Ao menos, foi assim que compreendi o tom reflexivo. Em sua composição textual, Moacyr Scliar retrata a presença natalina nos contos Missa do Galo, de Machado de Assis, Conto de Natal, de Rubem Braga, Peru de Natal, de Mário de Andrade, e Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, contribuições valiosas da nossa literatura no âmbito das representações de Natal.
E, por fim, temos a escritora Nélida Piñon e seu Um Presépio Brasileiro, uma tessitura literária mais complexa em termos de fluxo narrativo, comparado aos demais. A narradora, em sua jornada, também resgata memórias, fala da posteridade, de encontros natalinos confusos e cheios de situações peculiares. A autora não deixa de destacar como tais festejos perdem alguma carga de sentido quando pessoas próximas e queridas, integrantes das jornadas comemorativas, começam a partir desta vida e encerrar os seus ciclos, estabelecendo sensações de angústia e reflexões sobre as nossas caminhadas, tudo aquilo que fazemos e deixamos de fazer. Todos os textos, importante ressaltar, são acompanhados por ilustrações delicadas de Denis Gabriel Neves Mathias, um elemento adicional que traz bastante charme para a publicação com capa inspirada da DC Design e Comunicação, também responsável pela ótima diagramação. Lançado em 2009, o livro fez parte da campanha natalina da Kopenhagen, um brinde entregue aos clientes que faziam as suas compras de chocolate e afins para adoçar os festejos.
Em linhas gerais, além dos textos envolventes, selecionados com proeza pelos envolvidos no projeto, Crônicas de Natal: Grandes Autores Brasileiros é um livro bonito de se ter na estante. Aqueles que admiram o formato físico e a presença de uma biblioteca no lar, como quem vos escreve, fica satisfeito com a publicação. O seu único “porém” é o formato retangular, de pouca versatilidade para apreciação, algo que se não for devidamente manuseado pelo leitor, pode danificar rapidamente o material, haja vista a sua delicadeza. Mas este é um detalhe banal perto do conteúdo em si, mais importante. Com temáticas que versam sobre solidão, hipocrisia, consumismo, diversidade regional natalina, a dura ambiguidade que vai do amor ao ódio diante das comemorações deste período, dentre outros tópicos, o livro nos presenteia com o potencial do Natal como uma época profícua para a arena ficcional. São relatos literários que permite muita proximidade dos leitores, afinal, as variadas situações descritas por narradores e personagens, salvaguardadas as devidas proporções, já aconteceram de alguma maneira conosco.
Vermelho, intenso e com diagramação leve, traz ainda um CD com canções natalinas. Um presente “daqueles”.
Crônicas de Natal: Grandes Autores Brasileiros (Brasil, 2009)
Autoria: João Ubaldo Ribeiro, Ignácio de Loyola Brandão, Letícia Wierzchowski, Lourenço Diaféria, Luís Fernando Veríssimo, Marcelo Rubens Paiva, Mario Prata, Moacyr Scliar, Nélida Piñon
Editora: Pró-Educação Serviços e Eventos
Páginas: 82