Depois de quase uma década afastado da realização cinematográfica, o cineasta canadense David Cronenberg retornou para fazer as suas plateias suarem frio. Sim, nesta digna volta do filho pródigo do horror corporal, os temas trabalhados com maestria nos clássicos A Mosca, Gêmeos: Mórbida Semelhança, Calafrios, Enraivecida na Fúria do Sexo, dentre outros, ganham espaço nesta fase contemporânea do diretor que demonstra, mais uma vez, a sua habilidade em compreender a humanidade envolta no relacionamento complexo com as tecnologias. Desta vez, o polêmico intelectual da arte cinematográfica nos apresenta uma sociedade mergulhada na distopia, um mundo de pessoas entediadas, geralmente agachadas, sentadas ou encostadas em cada cena que aparecem, uma existência onde a dor parece não está presente, tal como qualquer instância de religiosidade. Neste sombrio microcosmo, a polícia precisou criar uma divisão investigativa adicional, o departamento de “novos vícios”, tendo em vista coibir os espetáculos de horror que demonstra o quão a escala evolutiva da humanidade se degradou.
A cena de abertura estabelece muito bem a atmosfera desejada: um plano relativamente fechado contempla um garoto a brincar na praia. A sua mãe grita de longe: “não coma nada que esteja por aí, combinado?”. O personagem sai do local onde se encontra e volta para dentro de casa. No fundo, um navio afundado demonstra o quão este mundo parece abandonado. Ali, numa aula de metáforas visuais do cinema, temos uma poderosa passagem breve, mas suntuosa para representar o declínio da humanidade, talvez algo que não tenha sido a iniciativa do diretor no campo da intencionalidade, mas uma leitura muito pessoal de quem vos escreve na posição de leitor em relação ao produto audiovisual apresentado, algo que na escala da tríade realizador, obra e espectador, é uma ação tranquilamente permitida. Sigamos: ao mudar de espaço, o garoto entra no banheiro da casa e num rompante, começa a se alimentar de um balde de plástico. A mãe, com estranhamente, olha tudo aquilo com asco. Nós, ficamos com pontos de interrogação a gravitar em torno de nossas mentes. Aonde Cronenberg pretende chegar?
A resposta não demora. Basicamente, Crimes do Futuro discute como os humanos precisaram mudar os seus respectivos estilos de vida, tendo em vista existir num ambiente dominado pelo sintético. Ao se tornar parte deste novo modelo de existência, torna-se fundamental passar por uma metamorfose que altera toda a estrutura do DNA. Um dos inveterados desta perspectiva de humanidade é Saul Tenser (Viggo Mortensen), um artista vanguardista que pretende atrair novo estilo ao seu trabalho. Com isso, decide transformar a remoção de seus órgãos em espetáculos de arte, deixando os seus seguidores obcecados por suas propostas de imersão, espectadores que consomem cultura por meio de manifestações extremas. Em linhas gerais, uma espécie de Grand Guignol dos novos tempos, onde a dor e o prazer das incisões cirúrgicas estão em simbiose, para o enlouquecimento das plateias que gozam psicanaliticamente com tudo aquilo que é demonstrado e captado pelas câmeras de celulares do público. Saul consegue seguir as suas tendências com o apoio de Caprice (Léa Seydoux), mulher com quem divide as mesmas paixões extremas, num retorno triunfante de Cronenberg ao terror corporal que vai além da vontade de apenas chocar, focado no incômodo para nos permitir refletir.
Quem também está absorta nesta jornada do artista de vanguarda é TimLin (Kristen Stewart), jovem que investiga os desdobramentos das iniciativas de Saul, o que não a impede de se sentir atraída pela imagem que o personagem transmite. Ademais, no desenvolvimento de Crimes do Futuro, as ruas são opacas, praticamente não há uma cidade e seus percursos, mas feudos habitados por pessoas que vivem quase na escuridão. Uma existência de anarquistas latinos, artistas brancos e entediados, um policial negro engajado e mulheres menos lascivas que o costumeiro na cinematografia do diretor. O corpo humano, aqui, conseguiu a façanha de evoluir a ponto de digerir plástico e seus derivados. Como exposto por um personagem, é a era de transformação onde os humanos precisaram alcançar a própria tecnologia que desenvolveram. O governo não encara as empreitadas bizarras nos corpos, considerando tais ações como algo inadequado. E a polícia cotidianamente, caça constantemente aqueles que estão vivendo fora da ordem. Num determinado momento, o protagonista de Viggo Mortensen traja um figurino específico, uma jaqueta para os exibidores de órgão, isto é, a “roupa da marca ideal” para legitimar o seu perfil social de artista exibicionista do extremo.
Nesta narrativa também escrita por David Cronenberg, praticamente todos os membros habituais da equipe técnica do cineasta estão de volta, num projeto que demonstra coesão estética, visualidade que ajuda na condução da trama, sem coibir a expansão da importância do diálogo e dos roteiros, em imagens chocantes que permitem a compreensão mais ampla daquilo tudo que o texto do realizador pretende endossar. Carol Spier entrega aos espectadores um design de produção sombrio, tomado por sujeira, adornado por placas envelhecidas, edificações em ruínas, paredes encardidas e sinais de ferrugem que indicam na textura visual, a decadência das figuras ficcionais que atravessam os espaços cênicos. Howard Shore, em mais uma parceria pomposa, compôs uma trilha sonora imersiva, profunda, mantendo o padrão de qualidade de suas texturas percussivas para o cinema de Cronenberg, setor que amplia as suas significações com o excelente design de som, assinado pela equipe de Rob Bertola, essencial para o estabelecimento da atmosfera de inquietude, especialmente nas cenas mais ousadas ou viscerais. Outro ponto que não podemos deixar de destacar é a fabulosa direção de fotografia de Douglas Kouch, um trabalho que nos faz lembrar a textura de pinturas barrocas, haja vista o tom adotado pela iluminação que ressalta sombras e delineia com tons bastante específicos, as encenações do elenco em desempenhos devidamente equilibrados.
Com roteiro escrito desde a época de produção de Crash: Estranhos Prazeres, Crimes do Futuro ficou engavetado por bastante tempo, mas chegou num momento bastante pertinente para as suas propostas, o tempo em que a máquina é aquilo que de mais próximo existe da sensação de humanidade. Apontado por alguns como um filme que recicla os temas já debatidos pelo cineasta em suas incursões anteriores, a narrativa em questão na verdade é a continuidade de um feixe temático que não pode se findar, afinal, a cada filme lançado, a sociedade se encontra diante de novas mudanças no campo da tecnologia, o que torna este ponto de vista limitado, parte de agentes do discurso do campo da crítica que demonstram uma visão míope, preguiçosa, ao avaliar a perspectiva de Cronenberg sem levar em consideração a totalidade de sua obra em meio ao que se reflete no cinema contemporâneo. Aqui, temos um cinema que levanta questões, mas não entrega as respostas prontas, ao contrário, nos desafia a pensar sobre o que é estabelecido em cena, contrariando aqueles que almejam teses prontas.
Em Crimes do Futuro, diversas reflexões se expandem pelos caminhos pavimentados pelos personagens. Podemos induzir, com base nos comportamentos das figuras ficcionais em seus dilemas e necessidades dramáticas, que um dos tópicos temáticos é o questionamento sobre os limites dos padrões de beleza impostos numa era de redes sociais, espelhos biométricos, ânsia por relevância diante da opinião do outro, momento de nossas vidas onde a cirurgia é o novo sexo. Neste cenário, o velho sexo é algo já esquecido pelas pessoas. Sentir dor, pelo visto, está no mesmo patamar do prazer. Lacerações no rosto são contempladas como posturas artísticas, tal como ter mais de duas orelhas ou participar de um concurso de beleza interior, evento com disputas para aqueles que possuem órgãos mais vistosos, com direito a categoria de Melhor Órgão Original Sem Função, em linhas gerais, uma sátira subversiva comum ao universo dos filmes de David Cronenberg. Tudo isto, narrado por meio de diálogos sarcásticos e estética em consonância com o estilo cinematográfico cyberpunk, dosado de traços do Noir.
Crimes do Futuro (Crimes of The Future) Canadá, 2022
Direção: David Cronenberg
Roteiro: David Cronenberg
Elenco: Viggo Mortensen, Kristen Stewart, Léa Seydoux, Denise Capezza, Don McKellar, Ephie Kantza, Jason Bitter
Duração: 107 min.