Paola (Lucia Bosé) é uma bela jovem casada há sete anos com um grande empresário, o Sr. Enrico Fontana (Ferdinando Sarmi). São tempos pós-guerra e as pessoas voltam a viver suas vidas de maneira mais ou menos normal, vendo o país se reconstruir e tentando reconstruir suas vidas. Com tempo, dinheiro e falta de maiores preocupações, Fontana, enciumado, paga uma agência de detetives para investigar o passado de sua mulher. Depois de tanto tempo, após refletir sobre o impulso apaixonado durante a Segunda Guerra, o empresário quer conhecer melhor sua esposa. A investigação começa e o olhar íntimo de Michelangelo Antonioni assume o leme deste drama que foi o seu primeiro longa-metragem.
Embora tenhamos personagens de origem pobre e que carregam uma série de necessidades e “sonhos de vida” desta classe social, os conflitos do filme não se enquadram na proposta neorrealista, o que rendeu, à época, algumas críticas ao diretor por parte de seus colegas, mesmo o Neorrealismo Italiano já estando em seus últimos suspiros, com apenas quatro filmes de grande relevância até o seu encerramento temático pelas mãos de Vittorio De Sica em Humberto D. (1952): O Caminho da Esperança (1950), Milagre em Milão (1951), Mulheres e Luzes (1951) e Roma às 11 Horas (1952).
Mas Antonioni não estava preocupado apenas com a miséria de classes. Sua preocupação estava na miséria humana. Em Crimes da Alma, filme de enredo mais “externo”, levando em consideração uma série de influências caras à temática neorrealista, o diretor enxerga Paola e Guido (Massimo Girotti) como modelos frequentes de sofrimento, presos a uma paixão que o dinheiro arruinou e marcados eternamente por um segredo infame que tentam, diversas vezes, convencerem-se de não são culpados, de que tudo não passou de um acidente, de que apenas ignoraram uma realidade e “fizeram o que fizeram para poder ficar juntos“.
A obra tem ingredientes que seriam recorrentes em Antonioni no futuro, como a contemplação da câmera diante dos personagens, muitas vezes “perdidos” em um grande cenário, talvez esmagados, oprimidos pela grandeza do mundo ao redor deles; os closes precisos nos momentos de pico de desespero, paixão ou horror e, o mais interessante, o domínio do espaço pelo diretor, tanto na captura de movimentação dos atores dentro do quadro, quanto na montagem interna, onde ele resolve muitas passagens que poderiam ser diminuídas ou mal interpretadas por uma edição que não escolhesse bem o encadeamento das situações.
O que pesa em Crimes da Alma é o roteiro, que parece pequeno demais para uma visão bem maior, sugerida pela imagem, o que infelizmente acaba também afetando a atuação da dupla principal, principalmente de Lucia Bosé, cujo choro descontrolado, os apelos, o desespero misturado com irresponsabilidade e paixão exacerbada tiram a seriedade do tema dessa história de amor com toques existenciais para estacionar em algo simplório, um tipo exagerado de “cinema de lágrimas” que não condiz com que havia sido construído antes.
As muitas cicatrizes que o amor e o tempo podem deixar em um casal são aqui expostas por Antonioni. Menos existencial que suas obras posteriores, esta estreia em longas do diretor trouxe alguns belos momentos de paixão, um tipo de intriga familiar que os italianos sabem fazer tão bem, e uma delicadeza que segue até a metade do filme, para então abrir espaço a um desfecho de consequências jogadas para o público, quase um “assim estava escrito” que é bem difícil digerir. Para quem quer colher os frutos de uma grande filmografia, observar esta estranha semente pode ser uma experiência interessante, com resultados que, inclusive, poderão divergir imensamente da linha de pensamento que defendi aqui, dado o nível passional que o roteiro da película nos traz. Vale a pena arriscar e ver em qual lado da moeda você, leitor, se encontrará.
Crimes da Alma (Cronaca di un amore) — Itália, 1950
Direção: Michelangelo Antonioni
Roteiro: Michelangelo Antonioni, Daniele D’Anza, Silvio Giovaninetti, Francesco Maselli, Piero Tellini
Elenco: Lucia Bosé, Massimo Girotti, Ferdinando Sarmi, Gino Rossi, Marika Rowsky, Rosi Mirafiore, Rubi D’Alma, Anita Farra, Carlo Gazzabini, Nardo Rimediotti, Renato Burrini, Vittorio Manfrino, Vittoria Mondello, Franco Fabrizi, Gino Cervi
Duração: 98 min.