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Crítica | Cracolândia (2020)

por Kevin Rick
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Cracolândia é como foi denominada uma determinada área no centro de São Paulo que foi consumida pela epidemia do crack. Corpos esfarrapados e doentios descansam nas ruas em meio ao lixo, abrigos improvisados ​​e carrinhos de compras cheios de pertences sujos. As pessoas usam crack abertamente, de dia ou de noite. Sua forma de vida subsistente serve apenas à droga. Em meio aos cachimbos acesos, também se vê violência, prostituição, abuso sexual, roubo, entre outras atividades criminosas. É essa terra sem lei no coração de São Paulo que o documentário de mesmo nome, Cracolândia, aborda. Através de pesquisas feitas pelo cientista político Heni Ozi Cukier, e pela direção do veterano Edu Felistoque, o filme navega na desgraçada vida dos moradores deste lugar infernal, explorando o passado, os problemas e as soluções para a maior cena de uso aberto de drogas do mundo.

A primeira metade do longa se desenvolve exatamente como o esperado de um documentário assim, e não digo isso pejorativamente, pois a execução do diretor Edu Felistoque é de extrema eficiência, e Heni Ozi Cukier, roteirista, narrador e entrevistador da fita, é sublime em tudo que faz. Eles estabelecem a problemática com rapidez, através de filmagens do local e dos usuários. É de deixar de queixo caído a realidade que essas pessoas vivem. As condições sub-humanas no qual nem sobrevivência é o objetivo, mas apenas a manutenção do vício realmente importa. Entrevistas de usuários e ex-viciados ajudam o espectador a entender a dimensão do crack no ser humano, e como o vício vai muito além da química em si, sendo perpetuado por questões sociais, psicológicas e sistemáticas. Falta de ajuda social, discriminação, solidão, são algumas das problemáticas que mantém as pessoas sem o desejo de ficarem limpas.

Esses depoimentos são interligados com entrevistas de sociólogos, secretários de saúde e especialistas na área que auxiliam na compreensão do início da Cracolândia no final dos anos 80 e início dos anos 90, e como péssimas gestões, descaso público, falta de planejamento do estado, entre outros motivos, deixaram a bola de neve continuar aumentando até as atuais proporções. Durante essa parte do documentário, duas belíssimas críticas são feitas. A primeira, mais pontual e direta – e já esperada por qualquer brasileiro – foi feita em direção aos prefeitos e governadores de São Paulo, que em uma série de vídeos de arquivo são mostrados prometendo ou afirmando o fim da Cracolândia. Nenhum deles cumpriu, obviamente.

A segunda crítica, apesar de também não ser uma surpresa, é mais interessante, sendo direcionada aos Direitos Humanos e ONG’s como o Craco Resiste. Essas organizações dão assistência e lutam contra a violência policial na Cracolândia. Definitivamente pontos válidos, entretanto, sua ideologia de ajuda sem regras, assistência sem dar ordem, acaba por perpetuar a existência da Cracolândia. Em sua busca de proteção aos necessitados, eles mantêm sua forma de vida precária, sustentando o vício dos usuários. Esse tema já foi abordado, por exemplo, no filme Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora é Outro, mas em relação aos presidiários e bandidos de favela. Um programa de 2014, batizado de “De Braços Abertos”, e apresentado pelo então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, é mais um exemplo da ajuda nociva que sustenta a Cracolândia, na qual o município oferecia aos usuários de crack moradia, assistência médica, alimentação e até emprego de guarda em meio período. Os que trabalhavam recebiam um pequeno salário, que podiam usar em qualquer coisa que quisessem – inclusive drogas.  

Esta primeira metade da fita é extremamente educacional e informativa. No entanto, é também uma reflexão de um debate polêmico. Afinal, a assistência desprovida de regras não funciona. A força policial, quando não é barrado por organizações contrárias a seu uso, funciona temporariamente, pois não existe planejamento. Será então que a solução seria a legalização? O filme pouco aborda esse caminho, mas deixa subentendido que o crime continuaria a vender normalmente. Então qual seria a solução? É na procura de resolver essa questão que Heni Ozi decide viajar o mundo para desvendar casos parecidos de uso de droga aberta, e se foram solucionados.

A parte final do filme é focada nessa questão, mas é intrigante o subterfúgio que o cientista político cria, pois, ao invés de alimentar nosso complexo de vira-lata, ele demonstra que países mais desenvolvidos como EUA passam por problemas similares, na famosa Skid Row, e mesmo os que tiveram sucesso em erradicar as cenas de uso de drogas aberta através de salas controladas de uso, estavam em condições completamente diferentes. Suíça e Noruega, por exemplo, são países pequenos se comparados com o Brasil, e a principal droga causadora do vício geral era a heroína, mais branda que o crack que deixa o usuário violento e nocivo. Essas nações apenas encontraram a resolução para os problemas em seu ambiente após uma reavaliação de suas sociedades.

É por esse motivo que este documentário não te dá uma resolução direta. Nosso ambiente, proporção e situação são diferentes do exterior. Mas ele também não concebe a mensagem de perdição. Pelo contrário, o objetivo do filme é demonstrar que a problemática desse local maldito vai além de questões de segurança, saúde, direitos humanos e urbanização. Este é um problema mais complexo, multifacetado e multidisciplinar. Ele está inserido em todos os sistemas da cidade, e de nossa sociedade. Aqueles usuários necessitam de assistência e ordem, mas principalmente que essa discussão não seja ideológica. Cracolândia expõe um microcosmo da nossa sociedade criminosa, e como esse lugar é um reflexo dos problemas de nosso país, um produto da negligência social.

Cracolândia – Brasil, 2020
Direção: Edu Felistoque
Roteiro: Heni Ozi Cukier
Elenco: Heni Ozi Cukier
Duração: 87 min.

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