Como muitos fãs por aí, eu considero a série original de Cowboy Bebop uma obra-prima. Mas eu não quero falar do anime. Eu quero falar da adaptação, algo aparentemente pouco entendido por audiências que idolatram materiais originais. Primeiro que o argumento da fidelidade – ou da pura transliteração – é uma das maiores besteiras em se tratando de adaptações, e a minha maior crítica ao universo de mangás/animes. Por qual motivo alguém irá querer ver a mesma coisa sendo que a obra original está lá bonitinha para ser revisitada? E então vem o segundo argumento: “essência”. Esse faz mais sentido, pois parte da necessidade de sequer haver a existência da adaptação, apesar de achar que muitas pessoas usam essência como desculpa para nostalgia e saudosismo, vide a recepção de certos “fãs” à Star Trek: Discovery, para dar um exemplo recente.
Se você não gostou da adaptação da Netflix, está tudo bem, mas se pergunte: você não gostou pela experiência em si ou por que sua opinião é baseada em comparações? Se a resposta for a segunda opção, entramos em um campo perigoso de leitura. Afinal, a obra merece sua própria interpretação sem analogias com a série original. Ainda mais em se tratando de um material original relembrado por muitos como perfeição narrativa e audiovisual, com a recepção do live-action caindo na típica “ame ou odeie”; sem meios-termos. E em se tratando do live-action de Cowboy Bebop, o meio-termo mostra-se de extrema importância, pois é uma obra discutível, contando com muitas falhas, mas certamente distante de uma experiência a ser descartada.
A série segue a mesma premissa do anime, acompanhando Spike Spiegel (John Cho) e Jet Black (Mustafa Shakir), dois caçadores de recompensas que saltam pela galáxia na nave Bebop em busca do próximo prato de comida. Na medida em que a série avança, a dupla ganha a adição de Faye Valentine (Daniella Pineda) e do cachorrinho Ein. Os protagonistas têm passados misteriosos que vão se desenrolando durante as aventuras episódicas do grupo. Aliás, em termos de enredo, às vezes eu acho a adaptação similar até demais ao material original, conforme temos várias sequências que são frame por frame iguais ao anime. Dito isso, o grande diferencial está na maneira como o showrunner Christopher Yost e companhia contam a mesma história.
A versão de 2021 é um western espacial que parece ter saído do gênero exploitation setentista. Essa veia cômica de exagero existia no anime, mas a adaptação amplifica o visual estilizado e saturado de cores, os diálogos de frases curtas e patetas e coreografias excessivamente ridículas com slow motions e comédia física; tudo sempre alimentado pela trilha sonora de jazz jocosa de Yoko Kanno. A trama sombria e assombrada pelo passado continua como tópico, mas a violência tem uma pegada mais bizarra e caricatural, enquanto o antagonista Vicious (Alex Hassell) parece um vilão genérico de desenho animado com suas expressões faciais exageradas.
A adaptação é pura cafonice. Não tem o mesmo equilíbrio entre drama e comédia da série original, e muito menos a profundidade temática. Mas a série nunca propõe a mesma experiência. É um cafona intencional e autoconsciente de seus delírios visuais e narrativos, como se estivéssemos vendo um cartum transposto para a vida real, descontroladamente exagerado e apelativo em seus clichês sarcásticos, close-ups descomedidos e uma breguice estranhamente energética nos combates. A dinâmica entre os personagens é comandada por suspeitas e um humor maníaco nas aventuras ordinárias, e o trio principal entende perfeitamente o tom descompromissado com performances também caricaturais dentro de seus arquétipos.
O anime é uma mistura de estilo, gêneros e trilha sonora jazzística num cenário espacial, mas sempre assume um tom melancólico com o drama de contemplação silenciosa no futuro sombrio neo-noir. Já a adaptação se assume como uma jornada espacial divertida e narrativamente superficial, mais interessada no seu universo espacial retrô vibrante e cheio de excessos que vão do cyberpunk indecente até as ruas empoeiradas de um faroeste sci-fi com cowboys caçando bandidos para comer noodles. Notem como a premissa da série é puro absurdo. Yost só abraça a salada com uma linguagem mais alegre, pop e galhofeira, do que a visão sóbria e pessoal de Shinichirō Watanabe. O carisma continua em tela, só menos tematicamente pesado, e bem mais divertidamente cafona.
Ironicamente, é, às vezes, o próprio brega que atrapalha a série. Não necessariamente como a agradável proposta, mas em termos de repetição. O show provavelmente funcionaria melhor em lançamentos semanais com a “aventura da vez” do que no modo de maratona que cansa o espectador com o estilo exagerado. Mas também penso que a equipe criativa necessita de mais inventividade com o tom aventureiro para além do exagero cômico. O drama é bem inserido para dar um respiro nos excessos visuais, rendendo ótimos arcos, como o de Jet com sua filha, e alguma sequências belíssimas, como a de Faye vendo o vídeo de si mesma quando criança, mas o próprio caráter superficial da série atrapalha conexões dramáticas mais profundas. Vejo isso na maneira levemente fútil que a relação dramática entre o trio de Spike-Vicious-Julia é desenvolvida.
A versão live-action de Cowboy Bebop não está no mesmo campo de qualidade da série original. Isso é fato. Mas ela precisa estar? Mesmo sendo narrativamente fiel demais em meio às mudanças, a adaptação caminha com suas próprias pernas na parte visual, no tom e na experiência da audiência. Ela tem suas falhas, mas nos proporciona o necessário: uma nova visão para Bebop. Mais cômica, descompromissada e expressiva, esta 1ª temporada diverte à beça se comprarmos a obra como uma nova perspectiva estilística para o anime.
Cowboy Bebop – 1ª Temporada (EUA, 19 de novembro de 2021)
Criação: Christopher Yost
Direção: Michael Katleman, Alex Garcia Lopez
Roteiro: Christopher Yost, Sean Cummings, Vivian Lee, Liz Sagal, Karl Taro Greenfeld, Alexandra E. Hartman, Javier Grillo-Marxuach, Jennifer Johnson
Roteiro: John Cho, Mustafa Shakir, Daniella Pineda, Elena Satine, Alex Hassell, John Noble, Rachel House, Geoff Stults, Mason Alexander Park, Tamara Tunie, Eden Perkins
Duração: 317 min. (10 episódios)