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Crítica | Cosmópolis (2012)

por Leonardo Campos
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Identidade, tecnologia, comportamentos humanos e violência. Os tópicos comuns ao cinema de David Cronenberg ganharam, em 2012, uma nova estrutura dramática reflexiva, desta vez, em Cosmópolis, produção com texto do diretor, inspirado pelo polêmico e premiado livro de Danny DeLillo. E, como tem sido de praxe no debate entre filme e espectador ao longo da sessão e no ato da escrita, momento marcado pela “gestação” da crítica que você, caro leitor, acompanha, torna-se inevitável não promover ilações contextuais entre o filme e seu momento de produção/exibição, voltado aos dilemas da relação da humanidade com as sufocantes ondas do capitalismo que a cada inovação tecnológica, ensaia uma representação de democratização da informação e um fluxo econômico que traz vantagens apenas para quem detém poder, isto é, uma seara de circulação para poucos, algo que torna a existência insuportável para quem vive dentro ou nos arredores de qualquer grande metrópole inclusa na agenda da globalização. Aqui, a tecnologia não é parte integrante de nenhum plano insano de algum cientista, mas o suporte para a possibilidade de contemplarmos os seres humanos mergulharem na chamada era da hipercomunicabilidade, um momento histórico que ainda atravessamos, conhecido por amplos caminhos e alternativas de conexão/comunicação, agravadas pela falta de habilidade da humanidade conseguir se compreender no bojo de seus relacionamentos mais triviais.

Numa representação ficcional destes espaços reais, onde as revoluções pulsam e em alguns casos, explodem violentamente, circula a limusine branca de Eric Parker (Robert Pattinson), um jovem homem sedento por poder, dinheiro e manipulação de todas as coisas que acontecem ao seu redor, desde questões de ordem social, como os desafios para burlar um congestionamento gigante na cidade, aos seres humanos que atravessam o seu cotidiano, tais como a sua esposa, seus assessores, o motorista e segurança, as prostitutas que lhe prestam serviços sexuais, o médico em seu atendimento remoto, dentre outros. Parker é um ser que emerge de uma sociedade repleta de modelos de consumo exaustivos, complexos de acompanhar, tomada por mudanças da economia local, solapados pelos efeitos da agitada globalização cultural, pouco compreendida por todas as esferas desta mesma sociedade, além de negociar dentro de um esquema econômico arbitrário. Como na filosofia de Bauman, é o homem que precisa saber se movimentar sem necessariamente se prender a um único lugar. Parker ao menos acredita que se movimenta. E nessa mudança de posicionamento fixo, ele faz sexo e reuniões, tudo no interior do grandioso automóvel. Os resultados talvez catárticos destes deslocamentos são partes de uma curva dramática que em nada dialoga com a estagnação do trânsito na cidade, provável alegoria para a economia também em crise, estagnada, assustadora para os investidores.

Exposto numa história que preza bastante o design de seu protagonista, Eric Parker é também a busca por ciclos repetitivos em sua jornada, algo que lhe traz desconforto e ira quando as coisas saem do planejado. Isso se revela em sua obsessão pelo diagnóstico do médico que lhe atende também na limusine. E, numa cena curiosa e pouco comum, o personagem faz o seu exame de próstata enquanto trava alguns diálogos com uma das personagens que demarcam o seu cotidiano pessoal e profissional. Segundo dados do médico, a sua próstata é assimétrica, algo de tamanho desconforto para o personagem se lamenta internamente e em algumas falas, da sua condição “anormal”. Junto ao processo de convicção diante da inevitabilidade da morte, uma série de acontecimentos iniciam uma programada mudança do destino em sua jornada rumo ao caos, interno e, concomitantemente, externo. Suas dimensões externas e internas não dialogam bem e o resultado será uma montanha-russa de emoções até o desfecho desta obra que tal como Videodrome – Síndrome do Vídeo, apresenta um esforço hercúleo de David Cronenberg e de seu elenco em levantar reflexões intelectuais importantíssimas para os espectadores, bem como para a qualificada filmografia do cineasta, mas que agradam menos quando a questão é o cinema na linha de frente do entretenimento. Vejo Cosmópolis como experiência, mergulho denso num universo de personagens captados pelas lentes grandes angulares da direção de fotografia de Peter Suschitzky, ambientados numa atmosfera musical mais onipresente de Howard Shore.

Isso não significa que o filme seja ruim ou muito menor que os demais do cineasta, mas é um dos menos envolventes em termos de desenvolvimento magnético dos personagens com o seu público. A vida contemplada com distanciamento e alienação, tal como o caso de James Woods no já citado Videodrome, bem como o carro como interior da ação, algo já visto em na crueza dos relacionamentos em Crash – Estranhos Prazeres, tornaram Cosmópolis um filme “cronenberguiano”, seja pela retomada de temáticas anteriores, mas por meio de outros vieses, seja pela metalinguagem interna, inerente ao seu próprio universo temático ao longo de tantos anos de dedicação ao cinema. Com alguns efeitos visuais supervisionados por Dennis Bernardi, propositadamente artificiais em algumas passagens, tendo em vista coadunar com os temas abordados pela trama Cosmópolis investe menos em maquiagem desta vez, pois a violência se faz mais presente na ordem do discurso, dos diálogos verborrágicos de uma trama que curiosamente nos traz uma dramaturgia de curta escala. É nessa pequena história que David Cronenberg consegue extrair bastante dos coadjuvantes que dialogam com o gênio multimilionário que pensa numa velocidade absurda quando o assunto está aliado aos interesses financeiros. Coadjuvantes como Didi Fancher (Juliette Binoche), Elise Shifrin (Sarah Gadon), Torval (Kevin Durand), dentre outros, e o mais importante deles, Benno Levin (Paul Giamatti), acompanhante do desfecho em aberto e da jornada aparentemente sem redenção.

Com design de produção de Avinder Greval, Cosmópolis traz um interessante cenário quase único para o desenvolvimento da narrativa. É praticamente dentro da limusine que a ação se desenvolve. É neste espaço que Eric Parker, personagem trajado pelo figurino de Denise Cronenberg, atravessa a cidade, diante do caos já mencionado. O carro é uma poderosa zona de controle. Devidamente revestido para tornar a sua zona interna hermética, os sons externos da barulhenta metrópole não atrapalham as suas situações interiores, a maioria voltada aos seus conflitos internos. Ele começa notório e estranho em seus trajes de luxo, descabelado e sujo no desfecho, numa jornada evolutiva que parte ser humano intocável e rico ao homem desprovido da aparência que marcou o começo de sua jornada, transformado numa criatura degradada, física e psicologicamente. A sua obsessão pelo corte de cabelo numa zona periférica é o motivo para a sua redenção violenta no mergulho das agruras do mundo material, vivenciado num dia atípico, marcado por sua travessia numa cidade que acaba de receber o presidente dos Estados Unidos e se encontra toda mapeada para liberar o deslocamento da figura política. Há, ainda, as tais manifestações contrárias ao capitalismo contemporâneo, o velório de uma celebridade admirada por Parker e outros tantos acontecimentos que demarcam as experiências externas ao seu carro, um ícone da sua arrogância e sensação de poder que decai ao passo que o personagem evolui.

Ademais, não podemos fechar uma reflexão sobre Cosmópolis sem discutir a simbologia do rato no desenvolvimento da narrativa, afinal, o asqueroso roedor conhecido por seus hábitos urbanos pelos esgotos não funcionam apenas como monstros de filmes do subgênero horror ecológico, mas ganham uma dimensão alegórica e física ao longo dos 109 minutos da produção. Ele ocupa o símbolo da ambição mercadológica de um sistema econômico onde o poder é representado pelas posses elevadas e pelos mecanismos que engendram a separação entre humanos acima de todos, os ricos em suas mansões, e os pobres, oprimidos pela miséria de um sistema que não prevê a utópica distribuição de renda igualitária para que haja oportunidades semelhantes para todos. O rato é a representação de seres humanos como Eric Parker, circundantes nos grandes centros urbanos, responsáveis por espalhar caos e pavor diante de todos. Ele está na passeata, numa enorme peça construída pelos manifestantes, bem como numa fantasia ocupada pelo chamado “anarquista” que monta no teto da limusine de Parker, além de ser atirado morto no para-brisa do luxuoso carro ou na cena do restaurante, quando jovens manifestantes levam ratos pendurados para causar desconforto nos frequentadores do local, e assim, para o bem ou para o mal, no esquecimento ou na cena que não sai da cabeça dos presentes, deixar marcada a mensagem contrária ao abismo que o capitalismo há eras faz afundar a nossa sociedade.

Cosmópolis (Cosmopolis) — Canadá, 2012
Direção: David Cronenberg
Roteiro: David Cronenberg
Elenco: Abdul Ayoola, Anna Hardwick, Emily Hampshire, George Touliatos, Gouchy Boy, Jadyn Wong, Jay Baruchel, Juliette Binoche, Kevin Durand, Maria Juan Garcias, Mathieu Amalric, Milton Barnes, Patricia McKenzie, Paul Giamatti, Paulette Sinclair, Philip Nozuka, Robert Pattinson, Saad Siddiqui, Samantha Morton, Sarah Gadon
Duração: 106 min.

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