Home FilmesCríticas Crítica | Coronation (2020)

Crítica | Coronation (2020)

por Ritter Fan
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A China é uma ditadura, mas essas duas palavras, curiosamente, nunca constam de uma mesma frase seja em que lugar for: artigos jornalísticos, críticas cinematográficas ou mesmo em conversas de bar. O que se ouve são eufemismos como “economia de mercado à la China” informalmente ou, o mais hilário, “república socialista unitária de partido único” mais formalmente. O poderio econômico do país – o novo imperialismo, outra palavra jamais utilizada junto com China – é tanto que todos tremem só de pensar em ferir as suscetibilidades de seus benevolentes dirigentes que só querem o bem do mundo.

O artista plástico Ai Weiwei, que se auto-exilou na Alemanha depois que os mesmos benevolentes dirigentes o autorizou a viajar, sabe muito bem o que é seu país e é justamente por isso que Coronation (título genial, aliás, não?) existe. O documentário, que ninguém quer comprar – nem mesmo os gulosos streamers – para distribuir em larga escala exatamente por medo de represálias que não, NUNCA acontecem, foi produzido a partir de filmagens clandestinas em Wuhan, o epicentro da pandemia de COVID-19, que não pode ser chamado de vírus chinês porque isso é racismo, contrabandeadas para fora do país e montadas em forma de documentário-denúncia à distância por Ai Weiwei.

Apesar de não deformar rostos e vozes, o diretor nunca identifica as pessoas que aparecem em câmera e nunca, em momento algum, interfere na narrativa por meio de narrações em off, textos explicativos ou qualquer outro elemento exógeno para criar amarrações. Com isso, ele se arrisca muito especialmente nos 40, 45 minutos iniciais, ao não conseguir dizer exatamente o que quer. Mesmo começando de maneira interessante com um homem tentando retornar para Wuhan em meio à pandemia e sequer conseguindo combustível na estrada sem que a polícia seja chamada, o que cria uma atmosfera de filme de terror, Ai Weiwei escorrega um pouco na firmeza do que acaba mostrando nos momentos seguintes, potencialmente frustrando o espectador.

Mas aqueles que conseguirem ultrapassar esse inegável problema inicial, serão recompensados. Quando o documentário entra em foco, efetivamente colocando rostos na desolação da gigantesca cidade, os dramas ganham relevo e profundidade, começando por um homem que, ao contrário do que aparece no começo, quer sair de lá.  Ele fora para Wuhan para construir os mega-hospitais instantâneos que o governo chinês usou como ferramenta publicitária e que a imprensa mundial interpretou como exemplo da eficiência chinesa e acabou esquecido pelas autoridades, basicamente vivendo em seu carro longe de sua família. Seu périplo kafkiano, preso no labirinto da burocracia chinesa, é assustador.

Indo além, a senhorinha que defende com unhas e dentes o Partido Comunista em uma conversa com seu sobrinho que tem uma visão mais pragmática da coisa é um momento iluminador. Não interessa o que é jogado diante dela, ela vai e coloca o governo acima de tudo, orgulhosa dos diversos prêmios que ganhara quando trabalhara como funcionária pública, feliz pelo sistema de saúde subsidiado pelo grande Estado… até que a porca torce o rabo e ela é confrontada com a verdade da coisa, com o tolhimento de sua liberdade (ou o que ela considera que seja liberdade) de ir e vir e com a “conta” da saúde. E essa conta é cara, conta essa que pesa no psicológico, algo que fica particularmente evidente na história do homem que quer apenas as cinzas de seu familiar morto pela doença. Coisas pequenas assim em um mar de autoritarismo e descaso vendido como eficiência do governo chinês.

Ai Weiwei não esconde o que a China conseguiu fazer para conter a pandemia, mas também não aplaude os esforços como uma foca para ganhar sardinha. Não dizem que uma imagem vale mais do que mil palavras? Pois isso é verdade absoluta aqui. Os mega-hospitais estão lá para quem quiser ver e a cidade fantasma de Wuhan gera imagens assustadores de filme sobre apocalipse, mas uma operação dessa magnitude, as pessoas convenientemente esquecem, só é possível em uma “república socialista unitária de partido único” só para usar a expressão que todo mundo repete sem pensar. Se, hoje, discute-se sobre a obrigatoriedade de uma eventual vacina contra a COVID-19, é porque estamos falando de nações que não são ditaduras. Em ditaduras, não há debate. Em ditaduras, se for do interesse do governo que todo mundo seja inoculado e se o país tiver dinheiro como a China obviamente tem, todo mundo será inoculado. E não, longe de mim ser contra a inoculação em massa (não vou nem começar a falar do que eu acho de quem é contra vacina, pois meu sangue já começa a ferver…), mas o que eu levanto é a possibilidade de debate sobre o assunto, debate que não seja seguido, claro, de desaparecimentos misteriosos ou tanques de guerra em praças públicas.

O cineasta chinês sabe que isso, lá em seu país de nascença, é uma raridade que, quando existe, flutua apenas pela cúpula. Isso fica particularmente claro quando é mencionado, ao longo do documentário, que o governador de Pequim foi transferido para Wuhan em substituição do governador de lá. Em que lugar do mundo que não seja em uma “república socialista unitária de partido único” isso aconteceria top down? Ah, mas isso é eficiência! Ok, então, chamemos de eficiente o mesmo governo que fez de tudo para esconder a pandemia até que isso não fosse mais possível. Ah, mas no Ocidente também é assim, alguns dirão. Sim, lógico, mas, no Ocidente – no Ocidente civilizado, que fique claro – muito provavelmente haverá responsabilização. No mínimo ninguém terá receio de chamar o boi pelo seu nome.

Coronation é um documentário que precisa ser lido nas entrelinhas. Ai Weiwei não torna nada muito óbvio e não se beneficia, aqui, por razões óbvias, de imagens particularmente bem feitas ou cuidadosas como em outros trabalhos seus. Mas o longa é um assustador retrato de um outro mundo, de um mundo em que a palavra eficiência traz a reboque, mas esconde, um sistema de um governo ditatorial que ninguém gosta de chamar assim porque o dinheiro chinês está cada vez mais ao nosso redor e nós precisamos dele. Que ironia…

Coronation (Alemanha, 2020)
Direção: Ai Weiwei
Duração: 113 min.

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