É a vida (é a vida), é o que todos dizem
Você está no alto em abril, derrubado em maio
Mas eu sei que mudarei essa história
Quando eu voltar ao topo, voltar ao topo em junho…Dean Kay e Kelly Gordon
Uma cobiçada carta do baralho, famosa por facilitar o jogo para quem a possui, desestabilizar as regras e, em alguns jogos, mudar de valor confirme a mão do jogador, serviu de inspiração primária para o desenho do Coringa, completado pela figura de Conrad Veidt no papel de Gwynplaine, em O Homem Que Ri (1928). Já em 1941, quando fez a sua estreia na primeira edição da revista Batman, o Coringa encarnava uma linha de ação e pensamento bem particulares, que o diferenciava dos outros vilões naquele início da Era de Ouro.
O Coringa sempre foi um agente do caos, alguém que nada tem a perder, que não carrega vínculos, não exige nada a longo prazo e tampouco tem a intenção de lucrar ou sustentar algum tipo de “poder oficial” com seus crimes. O que mais importa para o Coringa — e isso está claro desde a sua estreia — é a vontade de desestruturar o funcionamento da sociedade e abalar ou matar pessoas pelo simples divertimento de fazer isso. Ele tem prazer de ver o desespero dos outros quando não controlam uma situação. E foi sob esta linha pensamento que se construiu a personalidade do demoníaco palhaço, um dos maiores vilões dos quadrinhos cuja história de origem vemos agora pelas mãos de Todd Phillips (Se Beber, Não Case!, Cães de Guerra), que dirigiu e escreveu o roteiro do longa, ao lado de Scott Silver (8 Mile, O Vencedor).
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Desgosto e Repugnância
Chama-se afeto pseudobulbar o recorte específico do transtorno da expressão emocional involuntária que faz com que alguém não consiga controlar o riso ou choro. Em Joker (2019), Arthur Fleck sofre deste problema. Cidadão isolado, mal visto pelos colegas de trabalho e que tem uma devoção traumática à mãe (Frances Conroy), ele ganha a vida se vestindo de palhaço, eventualmente sendo espancado por moleques na rua e constantemente ouvindo provocações ou reclamações de quase todo mundo com quem tenta interagir. Nas primeiras cenas do filme temos todo o contexto de que precisamos para entender o desequilíbrio do protagonista. Seu riso patológico denota sua dor, seu desconforto e também a estranheza que ele causa nas pessoas. Não há espaço para segundas interpretações. Arthur Fleck não é alguém que se deve copiar, invejar, elogiar. Ele é um homem fraco em diversos sentidos. Um homem doente, difícil de ler e de se aproximar, cercado por coisas que o fazem se sentir pior e por uma cidade também doente. Homem e meio dividindo a mesma repugnância. E ambos mais complexos do que mostra a aparência.
O roteiro acertou em cheio quando escolheu 1981 (início da Era Reagan) como o ano de ambientação do drama, pegando o espírito de renovo do sistema e contrastando-o à realidade não tão passível de renovo da massa. Em Gotham City, Thomas Wayne dá voz a este ideal de mudança em sua campanha para a prefeitura da cidade, que de maneira simbólica vive uma infestação de ratos, após uma crise na coleta do lixo. Todd Phillips usa essa aparência marginal para deixar claro o cenário onde os já muito reprimidos problemas emocionais de Arthur explodem. A fotografia de Lawrence Sher (que na mesma safra assinou Godzilla II: Rei dos Monstros) investe pesado na construção de ambientes opressivos e visualmente doentes, utilizando verde, amarelo e azul como principais filtros, dando a atmosfera visual necessária à aproximação pretendida pelo diretor com Taxi Driver (1976).
A relação entre os problemas pessoais e os problemas sociais em Coringa é de um realismo às vezes farsesco, que se deixa exagerar em motivações políticas e psicológicas a fim de expor o protagonista como alguém à beira do abismo, cercado de gatilhos que mais dia menos dia seriam pressionados. O desgosto de Arthur com o mundo e com ele mesmo, por não ser tratado de forma adequada, só tinha um caminho a seguir. E não, não existe uma influência definitiva para isso; nem na ficção, nem na realidade. Explosões desse porte fazem parte de um conjunto de coisas que pela doença, covardia, infâmia ou incapacidade de certos indivíduos assumirem a responsabilidade pelos horrores que cometem, acabam elegendo uma desculpa oficial. A crise interna estava lá o tempo todo. A podridão social estava lá o tempo todo. A diferença é o que a soma disso é capaz de fazer a indivíduos doentes e a indivíduos sãos. O dia ruim que transforma alguém é só um dia comum que faz uma pessoa sã ficar mal e procurar descansar e se curar… ou desequilibrado agir, executando a sua piada mortal.
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Êxtase e Admiração
O clichê da “atuação digna de Oscar” é certamente um que podemos usar sem receios para o trabalho de Joaquin Phoenix como Arthur Fleck. Um dos grandes de sua geração, bastante conhecido por seu trabalho em obras como Gladiador (2000), Johnny & June (2005), O Mestre (2012) e Ela (2013), Phoenix sequer existe em Joker. Sua cuidadosa postura corporal, sua expressão facial congelada boa parte do tempo e que num rompante dá lugar ao riso patológico, seu alinhamento comportamental à dança como um meio macabro de expressão e o complemento de tudo isso com maquiagem e figurinos intocáveis são coisas que fazem o espectador ficar com os olhos vidrados na tela. O Coringa de Phoenix é, antes de tudo, uma pessoa doente em território hostil que ganha aqui um verdadeiro estudo de personagem, o que explica a onipresença do ator na tela, escolha mais que acertada do diretor e que dá ao artista a capacidade de mostrar-se, de incorporar um lento processo de transformação, indo dos ombros arqueados de Arthur Fleck à dançante e confiante postura de uma persona sem remorso, progressivamente ávida para se fazer ver como realmente é: alguém que acha graça na violência e no caos. E nesta frase está a chave de tudo.
A preocupação com este Coringa e o enredo que o envolve se divide em duas linhas de pensamento, a primeira em sua demonstração da violência (preocupação que só tem mesmo alguém que não vê filmes) e a segunda em sua representação do agente da violência, esta mais condizente com a realidade do filme. A primeira coisa a ser levada em consideração é que de Coringa só temos os 20 minutos finais do filme. Em todo o restante estamos falando de um homem sem atributo algum de ícone. Sua inaptidão patológica é refletida socialmente por seu isolamento, e mesmo no momento de glória, naquela que é considerada “a cena mais preocupante do filme”, a inaptidão permanece intacta. Nós encontramos aqui uma quantidade enorme de pedidos de ajuda, de gritos de alerta em relação à saúde mental, à necessidade de empatia e civilidade, mas nunca uma apologia à violência ou à própria figura em que Arthur Fleck se transforma quando dá lugar ao seu monstro interior.
E isso é algo incrível no filme. Nós vemos o mundo o tempo inteiro pela perspectiva do protagonista e, ainda assim, a conclusão é de algo condenável e não digno de reprodução na sociedade, apesar das muitas formas de exploração e degradação do homem, seja pelo óbvio problema de classe que o filme exibe, pelas diferentes formas de exploração física e emocional das pessoas ou pela falta de empatia e pela cumplicidade da maioria frente ao sofrimento alheio. O extremo disso (o Coringa) não é, portanto, antissistema. Ele não vocifera contra o horror externo e nem busca oportunidades para que possa curar um mal interno. Ele não tem planos de destruir algo para construir outro melhor. Sistema, agentes do sistema e indivíduos na periferia do sistema (dos iludidos aos violentamente insatisfeitos) não significam nada para ele. O Coringa não é contra ou a favor de estruturas sociais, ideologias, padrões. Ele é fatalmente egoísta e, a partir de sua transformação, numa linha de eventos moldada de forma magistral pela trilha sonora da compositora islandesa Hildur Guðnadóttir (que adiciona belos e pesados elementos de terror no ato final), alcança glória pessoal diante do caos. Enquanto isso for engraçado para ele, ótimo. Só que para o Coringa, nada é engraçado por muito tempo.
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Fúria e Vigilância
A noção do que é engraçado ou não está fora da racionalidade para esse personagem. Ele não está no time de ninguém: ele está no time dele. Engraçado para o Coringa pode ser a conclusão violenta de um talk show, numa bela referência a O Cavaleiro das Trevas (1986) e encerramento de um arco dramático que emula até demais O Rei da Comédia (1982). Engraçado para o Coringa é matar um adolescente com um pé de cabra e ajudar Batman a curar um vírus mortal. Engraçado para o Coringa é ver uma ação de autodefesa virar um triplo homicídio e beijar a careca de um anão, sendo gentil com ele. Ou dar um selinho numa senhora e matar a mãe sufocada. Errático, mau, violento e anti-padrão, o Coringa é por si só um anti-ícone, embora sua loucura o coloque por excelência no campo da vilania. O filme não o glorifica, tampouco as suas ações, mas também não o descaracteriza na maldade que representa, mostrando-a crua, real, de maneira simples e banal… exatamente como faz os jornais televisivos em fins de tarde. O tipo de pessoa para quem essa violência simplista e pseudo justificada é potencialmente perigosa é o mesmo tipo que encontraria “motivos” jogando videogames, imitando quadrinhos, lendo Stephen King, ouvindo Cannibal Corpse ou assistindo a Mártires (2008).
O que não se pode negar é que Coringa é um filme perturbador. Para todo mundo. Editado em uma linha bem peculiar de dias na vida do personagem, a obra nos coloca diante de situações que incomodam e chegam a causar um estranho tipo de medo, vide as cenas em que a câmera parece bailar com o personagem ou observá-lo dançando, posição que tem o seu ápice na cena em que o filme deveria ter terminado, com o Coringa recebendo a sua primeira ovação, algo que ele sabia que não iria durar. Notem que mesmo naquela cena, ele não tem preocupação em falar, em comandar, em agir. O ego elevado se diverte temporariamente com a situação, o ponto exato em que o vilão que vimos surgir é fincado na memória dos cidadãos de Gotham, que também estão doentes.
Um ponto que chama a atenção aqui é a humanização e exposição de problemas que causam determinadas posturas, mas que não justificam a violência ou a própria transformação do protagonista naquilo que ele se torna. Por um breve momento eu imaginei que o roteiro iria adotar uma linha vitimista (onde o indivíduo é subtraído de qualquer culpa), mas não é isso que acontece. Como sempre, é um alinhamento entre ambiente e indivíduo que movem as peças do jogo social, algo que se torna mais difícil de julgar quando problemas além da simples escolha ou condições de vida da pessoa (leia-se: problemas emocionais ou mentais) entram em cena. Já na excelente sequência em que o personagem entra no auditório para o talk show apresentado por Murray Franklin (Robert De Niro), temos a impressão de uma guinada de tom narrativo, o que me preocupou um pouco. Se passasse para uma abordagem sociopolítica em vez de se manter na linha psicossocial que foi estabelecida desde o começo, o filme terminaria mal. Mas não é isso que acontece.
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Terror e Espanto
A dolorosa risada cheia de engasgos de Arthur Fleck acaba por levá-lo à TV, numa sequência de arrepiar, com um dos memoráveis momentos de Joaquin Phoenix e cena. Seu discurso aparentemente crítico é, na verdade, uma mescla de verdades que sabemos existir dentro de nossa sociedade (questões de classe) com distorção de um ideal de culpa, generalizações e visão unilateral e exterminadora de lidar com aquilo que ele considera o problema. Tal discurso é tão acrítico, que o vilão realmente acredita que a causa dos males são pessoas específicas e não o sistema do qual elas fazem parte. Daí em diante nós vemos que o roteiro consegue exemplificar bem a estupidez orgulhosa desse homem que parece falar com alguma razão sobre algo, mas não conseguiu entender nada e só está colocando para fora uma visão psicopata da realidade em que vive. E notem que eu não disse que ele está mentindo em relação aos problemas que aponta. O filme inteiro mostrou claramente que isso existe. O discurso do personagem, porém, enxerga a situação de forma doentia.
Eu preferiria que o filme não tivesse aquela cena final, mas é possível entender a lógica por trás da quebra entre a oficialização urbana do vilão e sua prisão em Arkham. O momento, no entanto, é bom e tem um final que não nega a essência do personagem. Nessa mesma linha, eu preferiria que a exposição ligada às alucinações tivesse sido mais curta ou mais sutil. No momento em que Arthur entra no apartamento e Sophie (Zazie Beetz) age de maneira distanciada, o público já tinha material suficiente para concluir a questão, mas o roteiro insistiu numa exposição maior do caso — mesmo padrão usado para as fantasias da mãe de Arthur. Essas lombadas acabam sendo compensadas pelo tratamento de alta qualidade que a direção e o roteiro dão para o desenvolvimento da perturbadora origem, mas ainda assim incomodam.
E nada mais icônico do que no meio de uma jornada psicótica de ascensão do Coringa nós termos o contexto e a ação que geraram o trauma no pequeno Bruce Wayne, uma história de origem curta, cruel e instigante, mostrando as consequências da banalidade da violência assumida por alguém que já tinha problemas. A cena no beco pode até sofrer no aspecto rítmico, quando vista naquele momento específico da história, mas é simplesmente aplaudível, desde a saída dos Wayne do cinema (que exibe, claro, um filme de 1981, As Duas Faces de Zorro, e não o esperado A Marca do Zorro, de 1920) até o que ela representa como complemento dramático para este Universo, tendo duas origens — uma maligna e outra benigna — no mesmo contexto.
Depois de ser visto quase o tempo inteiro em meio às sombras, de costas, atrás de objetos ou barreiras, Arthur Fleck acaba desaparecendo. Em seu lugar surge o palhaço do crime, a quem a câmera de Todd Phillips captura de maneira livre e não só em closes: ele é inserido em grandes quadros, num espaço centralizado e, pelo menos uma vez, num plano engrandecedor de baixo para cima (contra-plongée), mostrando a diferença entre o indivíduo que vimos no início e o vilão que vemos no final. É um filme perturbador, diferente das adaptações de quadrinhos a que estamos acostumados, mas que tem tudo a ver com o que o Coringa é e representa. Um estudo de personagem e de seu ambiente que faz todo o sentido ter nascido em tempos como os nossos. Um retrato medonho sobre a crueldade em seu nível mais básico e sobre como a loucura pode estar em qualquer lugar, especialmente nos risos desesperados, exibidos a qualquer custo. É um lado extremo e aterrador da vida, mas é a vida. Então que entrem os palhaços.
Não é lindo? Não é estranho?
Perder minha oportunidade a essa altura da minha carreira
E onde estão os palhaços?
Rápido! Que entrem os palhaços
Deixe pra lá, eles estão aqui…Stephen Sondheim
Coringa (Joker) – EUA, 2019
Direção: Todd Phillips
Roteiro: Todd Phillips, Scott Silver
Elenco: Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz, Frances Conroy, Brett Cullen, Shea Whigham, Bill Camp, Glenn Fleshler, Leigh Gill, Josh Pais, Rocco Luna, Marc Maron, Sondra James, Murphy Guyer, Douglas Hodge, Dante Pereira-Olson, Carrie Louise Putrello, Sharon Washington, Hannah Gross, Frank Wood, Brian Tyree Henry, April Grace
Duração: 118 min.