Organizando e contextualizando 100 relatos que atravessaram gerações, passando pelos ciclos da tradição oral e se firmando como símbolos na formação do imaginário brasileiro, Contos Tradicionais do Brasil é um verdadeiro monumento sobre as nossas narrativas populares — fruto de um trabalho de pesquisa admirável realizado pelo brilhante Luís da Câmara Cascudo. Com erudição e dedicação ao resgate da cultura falada, o autor divide esse material em doze partes, explorando a diversidade do repertório narrativo nacional e sua habilidade de absorver, transformar e ressignificar influências dentro do universo simbólico do povo. Vale lembrar que, com um rigor menor, Cascudo já havia explorado temas semelhantes em Lendas Brasileiras (1945), um projeto mais simples em concepção; e voltaria a fazê-lo, com precisão e qualidade incomparáveis, no primoroso Geografia dos Mitos Brasileiros (1947).
Aqui, além de manter a integridade linguística e visual das histórias (muitas vezes diferentes das versões que o leitor já conhece), o texto é enriquecido com notas explicativas que, para cada relato, tecem uma rede de conexões etnográficas, históricas, socioculturais e editoriais. Essa abordagem mostra a amplitude da pesquisa e reforça a solidez do método empregado pelo autor, sobre o qual falarei mais adiante. Ao categorizar os relatos, Cascudo nos proporciona uma experiência mais organizada e uma percepção mais clara dos temas recorrentes na tradição oral. Por exemplo, nos relatos de encantamento, percebemos uma forte presença da dimensão mágica e onírica, onde os protagonistas desafiam a lógica do mundo real em busca de redenção, fortuna ou amor. Já nos relatos com função exemplar, nota-se a transmissão de valores em tramas onde virtudes são recompensadas e falhas humanas, punidas. Nos contos protagonizados por animais, rimos com a astúcia dos bichos, verdadeiros mestres em sabedoria, que carregam ensinamentos e refletem aspectos profundos das relações sociais. E nas facetas cômicas, há espaço para uma subversão divertida, onde a sagacidade popular satiriza os poderosos e desafia hierarquias com bastante ironia.
Ao abordar as narrativas religiosas e etiológicas, o autor nos mostra como o imaginário cristão e as interpretações sobre a origem do mundo se misturam com elementos fantásticos e populares, fundindo o sagrado com o profano, a crença com o humor. Ele também mira nas tramas sobre a astúcia do demônio, tema recorrente na literatura oral de vários povos, mostrando essa presença no repertório brasileiro e apontando para uma absorção criativa dos mitos europeus, em aventuras onde a inteligência humana sempre se sobrepõe às forças malignas. Essa conexão entre oralidade e simbolismo também aparece nos relatos de adivinhação e naqueles onde a natureza denuncia injustiças, dando voz a um universo animista e intuitivo que dá vida às paisagens e transforma a própria natureza — em suas múltiplas manifestações — numa guardiã do destino humano.
O autor defende que a continuidade dessas histórias, ao longo dos séculos; seu anonimato; a ampla circulação e sua persistência entre gerações revelam a força do conto popular, junto com sua função estruturante na identidade nacional, construindo um mosaico de valores, crenças e experiências compartilhadas. No excelente texto introdutório do volume, Cascudo faz uma ponte entre uma antiga narrativa sobre dois irmãos, registrada por um escriba egípcio há mais de três milênios, e o seu ressurgimento com novas roupagens na tradição brasileira, demonstrando a fluidez dessas sagas e sua capacidade de se adaptar a diferentes contextos culturais e históricos. Ele entende essa dinâmica e, ao organizar os relatos em sua obra, resgata não só textos, mas um modo inteiro de pensar e contar a realidade, preservando aspectos fundamentais da identidade popular, a voz daqueles que transmitiram essas histórias (com sotaque e informalidade) e um contexto de publicação daquela trama. Isso faz do livro, além de uma coletânea valiosa de contos tradicionais, uma rica fonte de pesquisa para compreender diferentes universos do conhecimento (acadêmicos ou não) por trás das narrativas.
Nos relatos acumulativos, construídos a partir da repetição progressiva de elementos, temos os exemplos mais sofisticados da formação da memória coletiva, funcionando como entretenimento e como exercícios mentais e estilísticos que garantem a transmissão dos ensinamentos. Já nos contos do ciclo da morte, vemos um tom mais sombrio e reflexivo, abordando o inevitável destino humano por meio de narrativas que, embora provoquem certo espanto, oferecem confortos simbólicos e respostas culturais para os mistérios da existência. O impacto desses relatos sobre o leitor é duplo: de um lado, encantam pela simplicidade da construção; de outro, revelam camadas complexas de significado, marcadas por um riso nervoso, pelo receio do desconhecido e pela reflexão sobre como encarar, com coragem, o que é inevitável.
Câmara Cascudo convida o leitor a mergulhar no imaginário e na tradição oral da nossa terra, nas vozes dos anônimos que, às vezes mudando detalhes da narrativa, expressaram a essência de um país repleto de olhares, experiências e criatividade. Não se trata apenas de um registro de contações transmitidas de geração em geração, mas de um convite para que cada leitor se envolva ativamente, reinventando as aventuras, ao repassá-las, e perpetuando-as em novos contextos. Com um ótimo método de organização do material coletado, Cascudo combina rigor acadêmico com uma genuína paixão pela cultura popular, transformando Contos Tradicionais do Brasil num dos mais importantes documentos da tradição oral brasileira; um inestimável registro da nossa arte de contar… e recontar histórias.
Contos Tradicionais do Brasil (Brasil, 1946)
Autor: Luís da Câmara Cascudo
Edição lida para esta crítica: Global Editora (13ª edição — Janeiro de 2003)
320 páginas