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Crítica | Conto de Escola e Umas Férias, de Machado de Assis

Triangulação política brasileira e o Impressionismo machadiano.

por Davi Lima
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escola

Nesse compilado com duas críticas de dois contos do escritor brasileiro Machado de Assis, Conto de Escola e Umas Férias se conversam quanto ao contexto escolar na infância, mostrando mais um pouco da história do escritor quando trabalhava na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro entre 1881 e 1897, e mais próximo do fim da vida em 1906. Ambos são publicados atualmente no livro A Cartomante e Outros Contos, reunindo outros textos como: A Causa Secreta, Pai Contra Mãe, O Enfermeiro, O Caso da Vara, Noite de Almirante, Um Apólogo, O Espelho, Missa do Galo, A Igreja do Diabo e A Cartomante.

 

Conto de Escola

Esse conto trabalha a triangulação política na infância do Período Regencial, formada por rua, colégio e Império. Quando o infantil narrador protagonista, “seu” Pilar, assim chamado pelo coleguinha Raimundo, se deslumbra pelo papagaio (pipa, arraia, enfim, depende da sua região brasileira) no céu, diz que a escola é o caminho da razão e o tambor é o diabo que lhe cativa a fugir da razão, Machado de Assis coloca uma tripla ironia em efeitos, a partir da Regência (1831 – 1840), da proximidade da República (1889) e da contemporaneidade (2022) em modos de leitura da realidade ficcional. A tríade que o escritor formula é tão política, tão infantil e tão realista como a instituição que retrata.

No texto Conto de Escola, a história do menino que entre o morro e o campo escolheu a escola por consciência – “E guiei para a escola. Aqui vai a razão.” – e depois foi apanhado pelo professor para receber bordoadas da palmatória por receber uma moeda de prata imperial – “Era uma moeda do tempo do rei…” – para ajudar o tal lerdo Raimundo, filho do professor, a aprender sintaxe gramatical, se torna uma síntese da política brasileira comentada. Seja pelo tempo do Poder Moderador de Pedro I, pela queda do Parlamentarismo às Avessas do período de Dom Pedro II, ou por nossa época da “secreta” harmonia corrupta dos Três Poderes em Brasília, as triangulações entre o político corrupto (Raimundo), o delator (o outro personagem, Curvelo) e o idealista (Pilar) são tão factuais que podem ser remontadas nas relações infantis sem tanto perigo de fugir dos contextos pueris que as caracterizam. Apenas pontuando o suspense dos olhares que Machado incrementa em sua narrativa escolar, já é possível imaginar dinâmicas de poder das cúpulas congressistas do Brasil.

Se por um lado pode-se questionar essa interpretação politizada e problematizadora pela capacidade de Assis manter o tom lúdico e infantil que pertence aos personagens, diante de suas afirmações temporais, da boa intitulação das ruas fluminenses – que posiciona espacialmente o colégio Dom Pedro II (que formava bacharéis e alunos com civilidade, criando uma elite nacional que ajudava a formar participantes do IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) perto da escola de Pilar – e da forte definição do professor como leitor dos jornais, partidário e símbolo do Período regencial, a conclusão do protagonista em seguir uma marcha militar gera muito material hermenêutico sobre as construções políticas interpretadas e conectadas pelos três tempos já descritos – o do texto, do escritor e do leitor do agora.

A diferença entre Pilar e os meninos ditos vadios, que provavelmente brincavam com o papagaio, confirma essas interpretações temporais e políticas. Era a liberdade que a escola não provia nos pensamentos do protagonista, mesmo por razão na consciência ter escolhido ir para a escola, na sua triangulação de escolhas no início do conto. A racionalidade da época da Regência era aprender gramática, enquanto a irracionalidade era brincar, sem se importar com as formações imperiais de educação.

Essa contradição, entre a liberdade e a prisão, entre a racionalidade e a irracionalidade da época regencial, é o confronto que Machado coloca como ironia potente que se expõe na declaração final: “E contudo a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da delação; mas o diabo do tambor…”. Na rua, primeiramente, havia a decisão de ir à escola imperialista em vez de brincar no campo ou no morro, mas após a escola ensinar-lhe a política brasileira, com o professor, com a moeda e com a delação (outra triangulação), foi na rua onde  ele saiu do caminho da escola para seguir os militares, o diabo republicano para o Império.

A visão temporal de Machado, pertinho da destituição do Império, se inclui nas implícitas contradições e ironias adjetivadas nas decisões, acontecimentos e caracterizações do Conto de Escola. Já para o nosso presente, desse 2022, acentua-se a política, a corrupção como fantasma político incalculável de deputados e senadores, a delação como ouro de ministros desesperados e o diabo do tambor reinando na visão do executivo. Nada mais machadiano, atual e brasileiro que esse conto.

Várias Histórias (Brasil, 1896)
Autor: Machado de Assis
Publicação original: Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, em 1884.
Edição lida para a crítica: A Cartomante e Outros Contos, editora Moderna, 3ª edição, 2013.
88 páginas

Umas Férias

Pelos sinais colocados durante o conto e pelo suspense realista que Machado de Assis tanto “gastou” em seus contos, Uma Férias, de certa maneira, se parece comum, como numa narrativa da qual  se espera uma surpresa digna da matéria artística do autor. No entanto, seja pela morte de sua esposa Carolina, seja pela retrodição sobrenatural do tempo, quando os “primórdios” da morte de Machado – como fato de existir esse conto – parecem existir na fantasia dramática da biografia do escritor; o efeito narrativo de conclusão psicológica do protagonista José Martins, uma criança de dez anos que se alegra em voltar à  escola que não gostava, tem uma potência muito maior que a contradição típica machadiana, posta no trecho “achei uma grande alegria sem férias”

Desde o título, que indica a indefinição do artigo UMAS em relação às férias, nada é plenamente concreto na trama, onde  as pistas em meio à  objetividade escapam de uma definição, assim como a descoberta do mistério. O pintor brasileiro Ângelo Guido em seu livro Os Grandes Ciclos da Arte Ocidental propôs a aproximação da escrita machadiana com o Impressionismo, corrente artística que na virada do século XIX para o XX começou a se tornar mais famosa, especialmente nas pinturas de Monet. Embora essa afirmação se apegue mais ao fato de como o pintor interpretava o Impressionismo, de como “não é uma nova escola mas a expressão de um novo modo de ver” (GUIDO, 1968, p. 110-125), não como uma revolução artística, e como ele identifica Machado de Assis tendo uma modalidade própria, não preso ao realismo literário; Umas Férias se aproxima do Impressionismo, em como o conteúdo infantil direcionado a um assunto “adulto” toma forma não descritiva pelas emoções, necessariamente, e sim pela psicologia das ações ao redor, externas, dos momentos.

“Morto como? morto porquê? Estas duas perguntas, se as meto aqui, é para dar seguimento à ação; naquele momento não perguntei nada a mim nem a ninguém”. Essa passagem do conto expressa bem como Machado conserva seu modelo de objetividade realista, mas ao mesmo tempo a expõe como tentativa de captar a reação infantil, difícil de tornar completamente verossímil em todas as probabilidades. Da mesma forma que o horário de 22h se torna 10h, o horário da festa imaginada pela criança José Martins, que na verdade era o tempo marcado para um velório, assim também as descrições objetivas do narrador infantil desviam do objetivo e criam mais suspense, como também a imaginação de sair da escola com seu Tio Zeca prenunciava férias e quaisquer distrações do que poderia captar do agora na mente e na visão na volta para casa. Isso soa bastante como Impressionismo clássico, sintonizando-se com o estilo machadiano que, segundo Guido, era próximo do ideal impressionista

Umas Férias alcança uma apoteose dramática e emocionante especial num modelo já reconhecido, seja pelos diálogos da mãe de José Martins com ele, ou por como ele interpreta esses diálogos com um não concreto pareamento de tristeza da recém viúva com a confusão infantil das férias tristes. A melancolia, o pessimismo e a frieza de um assertivo conto realista se desmancha positivamente, ao ponto de não exercitar todos os detalhes da realidade do protagonista para a manutenção da psicologia infantil situada na ironia persistente de que as férias e o luto se misturam até a dita alegria plena de voltar às aulas, mesmo com o estranhamento consistente do protagonista entender a alegria sem férias. ‘Alegria sem férias’, por sinal, talvez seja o conceito de morte que ironicamente Machado de Assis concebeu durante toda a narrativa. Mas ele só se concretiza ao final, quando a impressão das férias sem gosto é reconhecida ao sair de casa.

Relíquias da Casa Velha (Brasil, 1906)
Autor: Machado de Assis
Publicação original: na coletânea Relíquias da Casa Velha, em 1906.
Edição lida para a crítica: A Cartomante e Outros Contos, editora Moderna, 3ª edição, 2013.
88 páginas

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