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Crítica | Constelação – 1ª Temporada

No fio da navalha entre o sobrenatural e o científico.

por Ritter Fan
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Constelação é uma série de ficção científica do Apple TV+ estrelada por Noomi Rapace (a Lisbeth Salander dos filmes suecos da franquia Millenium), Jonathan Banks (o inimitável Mike Ehrmantraut  do Universo Breaking Bad) e James D’Arcy (o mordomo Edwin Jarvis, de Agent Carter) que se refestela na construção de uma atmosfera quase sobrenatural carregada de sobretons de teoria científica e na estrutura de conta gotas que os roteiros usam para situar o espectador, tudo isso com um começo que ensaia ser um thriller, mas que, não demora, abre espaço para o coração da narrativa, que é uma abordagem psicológica sobre o trauma, sobre enfermidades mentais e sobre a noção de realidade. Com isso, a manutenção do mistério é algo essencial para a primeira temporada realmente funcionar, ao mesmo tempo que é um artifício que, imagino, possa afastar muita gente. Seja como for, se eu for particularmente críptico no quesito sinopse ou desenvolvimento de ideias em minha crítica, isso se dá simplesmente porque decidi mantê-la livre de spoilers. Portanto, tenham paciência!

Criada por Peter Harness, dramaturgo britânico que mergulhou na escrita de roteiros para a televisão, como nas terceira e quarta temporadas de Wallander e na adaptação como série do romance Jonathan Strange e Mr. Norrell, dentre outros trabalhos, Constelação tem como estopim um misterioso acidente na Estação Espacial Internacional que vitima um astronauta e deixa Johanna “Jo” Ericsson (Rapace) sozinha por lá até conseguir voltar. Os dois episódios iniciais giram em torno dessa tragédia, já focando em Jo e deixando evidente as mais diversas situações estranhas que acontecem na órbita da Terra, inclusive e talvez especialmente a causa do acidente que apenas a protagonista vê ou acha que vê. Quando diversas sequências à la Gravidade levam Jo de volta ao nosso pequeno planeta azul, algo que ocorre ao final do segundo episódio, a história realmente começa, com a narrativa permanecendo focada em Jo e sua confusão mental que a faz estranhar fatos corriqueiros de sua vida, mas abraçando, também, uma espécie de reflexo dessa estranheza em sua filha Alice (Davina Coleman e Rosie Coleman) e em seu marido Magnus Taylor (D’Arcy), além da obsessão de Henry Caldera (Banks), ex-astronauta e cientista da NASA, que quer de toda maneira recuperar o que restou de um experimento envolvendo física quântica na estação.

Trata-se de uma série de queima lenta – bem lenta – que pode levar espectadores mais afoitos ao compreensível cansaço. Eu mesmo tive dúvidas sobre o ritmo da narrativa a partir do terceiro episódio, com os desdobramentos misteriosos demorando demais a mostrar frutos ou ter algum semblante de coesão. Por outro lado, e tendo o benefício da visão em retrospecto, tenho para mim que era essencial essa calma na progressão da história, calma essa que nos faz até mesmo duvidar quais são os personagens coadjuvantes realmente importantes. Diria que essa é uma série que poderia muito facilmente ter saído da mente de Carl Sagan (na verdade, o conceito veio de Sean Jablonski que, dentro da temática geral de teoria da conspiração, foi um dos produtores de Projeto Livro Azul), especialmente no que diz respeito à maneira como os roteiros desafiam indiretamente o conceito de realidade e de sanidade, trabalhando elementos de horror e de assombração que podem ou não se traduzir no tipo de desconhecimento científico e deslumbramento ignorante que o astrônomo e autor abordou brilhantemente em O Mundo Assombrado pelos Demônios.

Mas, como disse, é necessário paciência e, nessa linha, admito abertamente que Constelação, mesmo necessitando dessa criação da atmosfera claustrofóbica de mistério que usa muito bem o artificio de enquadramento, iniciando e encerrando metade dos episódios da temporada com Jo fugindo com Alice para uma cabana às margens de um lago congelado, situação que começa confusa e que demora a ganhar corpo, era uma série que teria se beneficiado de uma poda. Há muita repetição e muitas sequências que não levam a lugar nenhum que a própria série já não tivesse chegado. Por vezes até cansa, especialmente porque Rapace não é uma atriz que consiga carregar sozinha uma obra dessas, mesmo considerando as ótimas presenças de Banks e D’Arcy e, mais ainda, das gêmeas Coleman, que demonstram um talento precoce realmente impressionante, que por vezes chega a ser assustador e até angustiante nas pequenas sutilezas de seus trabalhos.

Aliás, é na medida em que os coadjuvantes citados e outros ainda como Barbara Sukowa vivendo Irena Valentina Lysenko, ex-astronauta e diretora da RosCosmos, vão se aproximando da trama central, ganhando linhas narrativas mais completas e interessantes, que a temporada realmente começa a se sobressair, com os roteiros de Harness realmente montando um quebra-cabeças ao mesmo tempo instigante e intrigante que, porém, tenho enorme receio que “acabe em pizza”, ou seja, naquela velha “saída pela direita” dos mistérios apenas pelos mistérios e não pelo bem da história sendo contada (e esse meu receio só aumentou com a cena final da temporada…). Mas, como não gosto de ficar projetando o que pode ou não acontecer em temporadas futuras – e nem poderia especular em uma crítica sem spoilers -, o que fica realmente é uma interessante fusão entre horror psicológico e ficção científica existencial que se vale da construção de personagens e no caminho que eles percorrem, não meramente em artifícios chamativos para criar hype.

Constelação, tenho certeza, não agradará todo mundo, seja porque ensaia uma coisa e acaba revelando-se como outra, seja porque caminha em sua própria velocidade, sem dar bola para narrativas que funcionam na base de uma reviravolta a cada 10 minutos ou de sequências de ação que só existem porque podem existir. Trata-se de uma temporada inaugural que exige paciência, alguma capacidade de lidar com frustrações, resistência à olhadelas no relógio e, principalmente, a vontade efetiva de investir em um mistério que demora, mas acaba se pagando em seus oito episódios, ainda que o final fique inteiramente aberto para temporadas futuras que, espero, aconteçam e, mais ainda, que sejam poucas, para evitar que a série se perca em devaneios enlouquecidos capazes de destruir toda a boa vontade do mundo.

Constelação – 1ª Temporada (Constellation – França/Reino Unido/EUA, de 21 de fevereiro a 27 de março)
Criação: Peter Harness (baseado em conceito de Sean Jablonski)
Direção: Michelle MacLaren, Oliver Hirschbiegel, Joseph Cedar
Roteiro: Peter Harness
Elenco: Noomi Rapace, Jonathan Banks, James D’Arcy, Davina Coleman, Rosie Coleman, Julian Looman, Henry David, William Catlett, Barbara Sukowa, Sandra Teles, Carole Weyers, Lenn Kudrjawizki, Rebecca Scroggs, Joshua Spriggs, Michel Diercks, Clare-Hope Ashitey, Chipo Chung, Sadie Sweet, Shaun Dingwall, Elenor Fanyinka
Duração: 426 min. (oito episódios)

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