O Velho Oeste já não é tão velho em Conspiração do Silêncio. Isso em relação ao tempo físico, que decorre pouco depois da Segunda Guerra Mundial; quanto ao tempo simbólico, realmente temos algo de bastante velho. Black Rock, minúscula região em que se desenrola o filme, está presa ao passado, destilando, em cada canto, um aspecto de que parece não ter sofrido nenhum progresso material ou cultural. Das (pouquíssimas) casas aos costumes de seus habitantes, das roupas deles à moral reinante, tudo ali remete ao bom e velho Oeste que tanto já vimos nos filmes de John Ford ou Anthony Mann. E é por este contraste, entre um presente e um passado que parece se sobressair, que a obra trabalha o seu ponto local dentro do gênero faroeste: o western revisionista.
O western é uma mitologia, e é um western revisionista o trabalho que revisita essa mitologia. O que existe, a princípio, é um ideal (de tempo, espaço, ações e narrativa referentes ao western convencional) a ser desconstruído — seja pelo social ou sentimental (O Homem Que Matou o Facínora ou Os Imperdoáveis), o culto ou a sátira (Era Uma Vez no Oeste ou Butch Cassidy e Sundance Kid). Muitas vezes, romantismo e desencanto andam lado a lado, fazendo com que a decadência seja olhada com ternura. Nem de longe é o caso aqui. A decadência é onipresente, os próprios personagens a verbalizam frequentemente; no entanto, a única abordagem existente é a de um tom seco e extremamente árido. E toda essa decadência é levantada justamente quando o faroeste em geral estava em pleno auge, o que faz desse filme uma verdadeira anomalia misturada em um oceano de obras que ainda afirmavam o western como algo em desenvolvimento — e não em desconstrução. Conspiração do Silêncio é o western revisionista muito antes das possibilidades de existir o western revisionista.
Existem, é claro, muitas das características típicas de qualquer faroeste, duas das principais são o arquétipo do forasteiro e a dinâmica deste com os cowboys ao seu redor. Na verdade, não se pode falar muito bem em “arquétipo’’ aqui, pois o forasteiro em questão nem sequer é um cowboy; trata-se de um misterioso veterano de guerra em idade avançada que está em Black Rock sabe-se lá pra quê. A chegada dele causa todo um mistério diante de vários homens que por ali vivem e, assim, boa parte dos diálogos do filme se dão pelas interações hostis entre Macreedy (o forasteiro não-cowboy) e essa população local. É aqui que o roteiro conserva a citada dinâmica reinante no western geral: há o clássico constante confronto do protagonista com os demais personagens, que se inicia e se desenvolve com base no contato mais ríspido e rude possível. Além de ser crucial para o andamento da trama, essas relações delimitam perfeitamente o campo que esse western revisionista remete ao western comum, sendo o elo que conecta esses dois espectros numa síntese fundamental para a consolidação do subgênero.
Ao pensarmos num projeto de filme dos anos 50 tão cru e seco quanto esse, o natural é termos em mente o uso do preto-e-branco para expressar essas características. Contudo, a produção de Conspiração do Silêncio arriscou o oposto disso: o visual é em cores — e funcionou perfeitamente. Funcionou porque são cores que não buscam destaque algum na obra. É um visual totalmente morto que contribui para a atmosfera meio azeda proposta. Pode-se dizer que o grande virtuosismo estético do filme é não ter virtuosismo algum. Um tratamento minimalista é o único caminho para um longa como esse, pois o conceito de Conspiração do Silêncio se dá justamente pela ausência de algo; é um filme, de certa forma, sobre o nada. O nada percorre a apresentação dos personagens, da cidade, da presença de Macreedy nela e de quem é Komoko (por um tempo, uma incógnita na história). O nada, nesse caso, não é como um vazio existencial (que, nesses termos, já deixaria de ser um nada de fato). Ele é a letargia, o atraso e o isolamento daqueles homens e daquele local. Aliás, o vilarejo é como se fosse um personagem (o protagonista, no caso); sua falta de conteúdo torna-se a substância mais forte do filme.
Os personagens normais, como já dito, são completamente rústicos; e isso, devido ao convívio grosseiro deles, acaba toda hora gerando bons diálogos ácidos. Vez ou outra, surgem até algumas falas espirituosas, como o pequeno monólogo em que um habitante diz acerca daquela região: “Para o historiador é o Velho Oeste. Para o escritor é o Oeste Selvagem. Para o empresário é o Oeste subdesenvolvido.’’ É o roteiro exercendo seu revisionismo dessa vez sobre o culto ao Oeste mítico; entretanto, faz isso sem se render à prática do próprio culto. Consegue ser explícito sem perder o distanciamento. Outro fator que chama a atenção no roteiro é que, no meio de “tanto nada’’, ele vai plantando algumas peças-chaves que só virão a ter seu sentido revelado depois, na medida em que a narrativa vai fechando seus arcos. O braço ferido de Macreedy, a figura de Komoko, a fertilidade de Adobe Flat, Reno Smith falando que se alistou no exército após Pearl Harbor; tudo isso contribui para a resolução da trama revelando seus mistérios e embasando algumas questões.
Conspiração do Silêncio talvez seja o único western que não tenha um cavalo — os cowboys andam é de carro, a coisa mais avançada naquele fim de mundo. O filme, em seu último terço, revela-se como um (excelente) suspense, tornando a narrativa mais eletrizante quando vamos percebendo que os moradores daquele vilarejo possuem mais mistérios do que Macreedy. Saltamos do contemplativo para o tenso, e o protagonista deixa de ser um personagem tão passivo assim. Ele, além de explorar esses mistérios, se afirma naquele ambiente conforme os próprios termos de lá, chegando a quase quebrar Smith na porrada. Estamos diante de um filme visionário por antecipar o western revisionista tanto assim, mas até que existe um contexto propício a isso: o longa, com pesados ares de Monte Hellman e como muitos outros dos anos 50, encontra-se no meio-termo entre a Hollywood puramente clássica e a Nova Hollywood. Pertence a uma leva de filmes mais intimistas que ousaram ser obscuros e selvagens ainda dentro do sistema de estúdios. Ou seja, além de antecipar um novo tipo de western, Conspiração do Silêncio também antecipa uma nova fase do cinema americano por inteiro.
Conspiração do Silêncio (Bad Day at Black Rock) — EUA, 1955
Direção: John Sturges
Roteiro: Millard Kaufman, Don McGuire, Howard Breslin (conto)
Elenco: Spencer Tracy, Robert Ryan, Anne Francis, Dean Jagger, Walter Brennan, John Ericson, Ernest Borgnine, Lee Marvin, Russell Collins, Walter Sande, Francis McDonald
Duração: 81 minutos.