Comando das Criaturas marca o começo oficial da versão 2.0 do Universo Cinematográfico DC, que ganhou o subtítulo Deuses e Monstros. Com James Gunn no comando geral desse universo e no desenvolvimento e nos roteiros da série, os dois primeiros episódios (de um total de sete) foram lançados simultaneamente no Max, e, como costumo fazer em situações assim, escrevi duas críticas separadas, a primeira sem que eu tenha assistido o segundo episódio para evitar contaminação. Aqui vão elas:
1X01
Embrulho no Estômago
Pode ser que, à primeira vista, não faça muito sentido começar oficialmente o novo Universo Cinematográfico DC com uma animação de personagens quase que completamente desconhecidos (para usar um eufemismo) do público em geral, mas a grande verdade é que esse é um movimento de xadrez cuidadosamente calculado por James Gunn, Peter Safran e os engravatados que mandam no dinheiro da Warner Bros. Discovery, pois (1) animação é mais barata e mais rápida e, portanto, evita que um ano inteiro se passe sem obra alguma desse reboot desde seu anúncio em 2022; (2) não gera grandes expectativas justamente porque os personagens são de categoria Z nos quadrinhos e ninguém – a não ser os dodóis obsessivos, mas aí não tem jeito – ficará enchendo a paciência porque a cor do pesponto da bainha da calça de determinado personagem é azul e não turquesa, e (3) está perfeitamente dentro da caixinha de areia em que Gunn se sente mais confortável, ou seja, a de grupos de personagens heterogêneos reunidos em situações absurdas, algo que ele começou a aprender a fazer com Madrugada dos Mortos e Scooby-Doo, aperfeiçoou com Guardiões da Galáxia (até o momento seu ápice criativo) e levou para a DC com O Esquadrão Suicida e Pacificador. Comando das Criaturas, portanto, mesmo que possa ser considerado por muitos como um início de universo compartilhado com bem menos pompa e circunstância do que deveria ser (e é, sem dúvida), é a escolha ideal sob variados pontos de vista.
E existe um quarto ponto que deixei para falar só aqui nesse parágrafo, pois ele se confunde com a história. Falo da familiaridade, nem que seja de longe, que o público em geral tem especificamente com essa estrutura idêntica semelhante a do Esquadrão Suicida, pois Comando das Criaturas é a mesma coisa só que com monstros, uma equipe que Amanda Waller (Viola Davis) reúne debaixo da lógica de que está proibida de usar humanos (uma lógica furadíssima, já que, com exceção do robô e, talvez, com boa vontade, do Doninha, todos os demais são humanos até prova em contrário, certamente mais humanos do que o Superman que, como sabemos, vem de Krypton) e, no lugar de ameaçar explodir cabeças, apenas dá choques dolorosos, um downgrade na violência que, confesso, não entendo muito. Seja como for, não demora quase nada para Rick Flag Sr. (Frank Grillo), pai do Rick Flag Jr. morto no longa do Esquadrão de Gunn (filme aliás explicitamente canonizado como parte do UCDC 2.0 pelo primeiro episódio da série), liderar uma equipe formada pela poderosa Noiva de Frankenstein (Indira Varma), o radioativo e esquelético Doutor Phosphorus (Alan Tudyk), a até agora inútil “monstra da Lagoa Negra” Nina Mazursky (Zoë Chao), o inconveniente urinador Doninha e o matador de nazistas frustrado por não ter nazistas para matar (no universo de lá, pois neste aqui está cheio…) Robô Recruta (ambos Sean Gunn) em uma missão de proteção do Pokolistão, país ameaçado pela feiticeira amazona Circe (Anya Chalotra) e governado de fato pela tarada Princesa Ilana Rostovic (Maria Bakalova).
Tudo o que o primeiro episódio faz é apresentar os personagens e a situação, algo que o roteiro de Gunn faz uma, duas, três, 10 vezes em uma sucessão de diálogos que parecem as mesmas coisas em loop infinito, uma verborragia danada que não acaba nunca e que raramente é engraçada de verdade, pois toda a pegada da série – caricata, exagerada, e até mesmo bobalhona, mas no bom sentido – já tem humor suficiente para não precisar de mais na forma de piadas que reciclam ideias apresentadas nos primeiros três ou quatro minutos de projeção. Confesso que, nesse começo, os únicos personagens que se destacaram foram a Noiva, mas muito mais pelo seu design que bebe diretamente dos Monstros da Universal e toda sua fleuma e falta de paciência com os parvos que a cercam e o Robô Recruta, que é propositalmente monocórdio, abraçando de verdade a repetição como sua própria razão de ser, algo que Sean Gunn entendeu muito bem em seu belo trabalho de voz.
A técnica de animação parece um meio termo entre o padrão fraco das animações atuais da DC (sim, gente, fraco mesmo e isso vindo de um cara que nunca ligou muito para isso) e o nível excelente que podemos ver em Harley Quinn e Homem-Pipa. Na verdade, na régua comparativa, Comando das Criaturas está além do meio termo, por vezes aproximando-se das duas séries citadas, ganhando pontos extras pelo design dos personagens que são ao mesmo tempo próximos do material original em quadrinhos, mas com personalidade suficiente para ser algo com personalidade própria. E o mesmo vale para as ambientações exóticas no castelo do Polokistão. Mas é aquilo: ainda é uma série, nesse primeiro episódio, que não se arrisca muito, que fica ali no básico de um começo simples e que não tenta se comprometer com nada, sequer no nível exacerbado de violência e sexo que nós sabemos que Gunn alguma hora chegará a não ser que seja muito fortemente podado pelos executivos a quem tem que obedecer. Embrulho no Estômago, portanto, faz o que tem que fazer sem criar quase nenhuma marola.
1X02
O Colar de Turmalina
O Colar de Turmalina é um episódio definitivamente melhor do que Embrulho no Estômago, já que tem a vantagem de não precisar introduzir a premissa e os personagens e James Gunn revela-se mais seguro de seu material e estala os dedos com vontade para então inserir o tipo de “linguagem subversiva” a que ele está acostumado, ou seja, algo milimetricamente dosado para não ir além do ponto, para não transformar de vez suas criações em completas paródias. E isso é bom, mas ao mesmo tempo ruim, pois, com isso, ele se segura para não encarar de verdade as questões que poderia encarar. Ele fala da invasão da Croácia pela União Soviética usando alegorias, mas não joga sal na ferida. Ele usa sexo transgressor – uma princesa novinha com um soldado que poderia ser seu avô e criador e criatura na mesa da criação no que é uma versão caliente de necrofilia, se é que posso chamar assim -, mas não muito transgressor para não ferir suscetibilidades. Em outras palavras, só que praianas, ele entra no mar, mas fica no “rasinho”.
Em termos de desenvolvimento narrativo ou de personagens, o episódio é um completo zero à esquerda, mas o que o destaca, o que o torna interessante é tão bom que eleva a experiência para algo que finalmente fica ali na linha do “bom”, com potencial de crescer bem mais. Falo, claro, da história de origem da Noiva de Frankenstein que retorna ao castelo onde foi criada para recuperar o colar do título que lhe foi presenteado por Victor Frankenstein, seu criador e amante, assassinado por ciúmes pelo Monstro de Frankenstein que, aqui, se chama Eric (David Harbour), e que não só está vivo, como passou quase 200 anos stalkeando e atormentando sua suposta noiva. Trata-se de uma história aí sim verdadeiramente transgressora e interessante que subverte e reinventa papeis dos monstros clássicos e que só sofre de um infelizmente grande problema: ela é corrida demais, espremida entre o falatório da insuportável anfíbia que eu espero que morra, mas sei que não vai, e a necessidade de inserir pancadaria no final entre a Noiva e Circe, pancadaria essa que é boa, muito dinâmica e até bem variada, mas que não chega próximo do vislumbre que temos da melancólica história da Noiva.
O que precisava ter sido feito aqui era o “episódio flashback” completo, sem medo de ser feliz, pois, ao que tudo indica, o “casal” Frankenstein é o único com relevância dramática na série, especialmente a metade feminina dele, claro, já que a Noiva é facilmente a melhor personagem da série (e olha, para mudar isso será difícil, viu?) tanto em termos de construção e design, como em termos de encaixe na narrativa, pois ela não parece estar ali apenas por estar, apenas para um ou outro momento engraçado/nojento/triste ou qualquer outro adjetivo aplicável na hora. Afinal, vamos combinar que a história macro é desinteressante (ok, simples, banal, burocrática, pouco inventiva) até não poder mais, e isso porque eu já estou levando em consideração diversas possíveis reviravoltas para manter acesa a chama do roteiro na base do solavanco ao longo dos cinco episódios restantes.
Se isso quer dizer que a série não tem mais salvação? Claro que não. Ela é divertida, sem dúvida, mas daquele jeitinho raso que James Gunn volta e meia faz quando trabalha no automático. Comando das Criaturas precisa de mais momentos de construção de personagem como vemos a toque de caixa acontecer com a Noiva (será que podemos ter o Corte do Diretor desse episódio, hein?) do que cena de sexo atrás de porta fechada com um esqueleto que não para de falar tentando impedir que atrapalhem os orgasmos histéricos que acontecem do outro lado. Falta, muito sinceramente, que Gunn aposte de verdade suas fichas como a equipe de produção de Harley Quinn/Homem-Pipa aposta. Sem isso, o motor desse início do novo Universo Cinematográfico DC não vai engatar.
Comando das Criaturas – 1X01 e 02: Embrulho no Estômago / O Colar de Turmalina (Creature Commandos – 1X01/02: The Collywobbles / The Tourmaline Necklace – EUA, 05 de dezembro de 2024)
Desenvolvimento: James Gunn
Direção: Matt Peters (1X01), Sam Liu (1X02)
Roteiro: James Gunn
Elenco (vozes originais): Frank Grillo, Indira Varma, Sean Gunn, Alan Tudyk, Zoë Chao, David Harbour, Maria Bakalova, Anya Chalotra, Viola Davis, Peter Serafinowicz
Duração: 23 min. (cada episódio)