Minha relação com os dois últimos filmes de Bertrand Bonello, Nocturama e Zombi Child, foi particularmente ambígua. Ainda que me gerassem emoções viscerais, honestamente não sabia dizer se era para o bem ou para o mal (principalmente o primeiro), o que vinha da minha dificuldade de entender o posicionamento do olhar de Bonello para com a juventude. Seria uma homem de 53 anos que faz filmes sobre a juventude contemporânea para entendê-la, em uma posição de fascínio, e tentar radiografar melhor suas questões por uma perspectiva de alguém de fora, observando suas contradições? Ou ele faria filmes em uma posição de superioridade, como um debochador moralista que aponta dedos para os problemas como qualquer boomer de sua geração? Coma, que fecha esta trilogia da juventude por parte do diretor, também serve para esclarecer meu posicionamento diante do diretor.
Em um prólogo quase que incomunicável por imagens silenciosas extremamente ruidosas em um movimento abstrato de pixelização, Coma é apresentado como uma carta diretamente de Bonello para sua filha Anna, como uma forma de ajudá-la a lidar com os tempos atuais. Ou seja, caímos novamente na urgência de mais uma obra de isolamento, um filme que surge da necessidade de resposta fílmica a este estado de mundo, mas principalmente de exteriorizar, em imagens, os sentimentos que ele gera em seus indivíduos aprisionados. É entendível quem tenha uma certa preguiça a priori, por achar que o formato já pode ter esgotado seus procedimentos cinematográficos possíveis (o ciclo natural de cada gênero que se forma) ou até se tornado enfadonho pelo próprio timing de lançamento, dois anos depois do início da pandemia. Contudo, a obsessão de Bonello em colocar esta crise sob um microcosmo da juventude — o que significa também usar dos meios tecnológicos que circundam ela — consegue gerar uma fluidez ao filme que está constantemente se reinventando e disperso diante da impossibilidade de permanecer letárgico, em uma montanha russa de emoções que vão da comédia ao medo de um plano a outro.
Ao assistir recente o blockbuster norte-americano Doutor Estranho e o Multiverso da Loucura, lamentei (mas não com espanto) como um filme que nem esse era tão comportado formalmente, que de “multiverso” e “loucura” praticamente só o nome, não conseguindo realizar uma cena que fizesse jus a ideia de diversos mundos se chocando e dialogando, não se permitindo entrar em uma piração imagética (só em uma cena de 2 minutos em que os personagens atravessam vários universos). Vale traçar este referencial porque Coma, filme francês fora da lógica industrial, pode ser tudo que um filme engessado de estúdio sem liberdade para seu diretor poderia ser, um verdadeiro multiverso da loucura explorado em ideias mise-en-scène.
O grande mérito de Bonello é partir desta situação inicial — uma jovem delimitada a um quarto durante a pandemia — e pensar nas suas possibilidades de expansão, em um processo de projeção para fora, ainda que o corpo permaneça fisicamente aprisionado. Ou seja, transformar em imagens o que todos fizemos mentalmente durante a auto-reclusão. Portanto, Coma é um filme de fuga, que encontra possibilidades de se concretizar através de uma vontade pela ficcionalização, encontrando saídas por mundos internos dentro do quarto, por uma lógica de mise-en-abyme. Bonello encontra uma metanarrativa hilária e absurda dentro de uma doll house (casa de bonecos), liberta angústias e raiva por pesadelos em uma uma floresta, olha o mundo sob estado de vigilância por câmeras de segurança ou pelas inserções de risadas da plateia em sitcoms, provoca a estranheza da disforia pelo olhar em animação, confronta a solidão por chamadas de zoom e chamadas de vídeos, encarando o mundo digital como uma outra realidade viável de existência e usa da própria internet.
Ainda que este termo esteja sendo demasiadamente usado para denominações vazias, Coma é uma jornada “sensorial” porque desde o início ele mimetiza uma ideia de hipnose, de uma alienação (não em um sentido pejorativo, mas de dissociação do ser humano, de entregar o seu corpo). A menina, que também somos nós da audiência, abandona o controle de seu corpo e se deixa levar por outra voz no comando, através da condução magnética da youtuber Patricia Coma (a presença de Julia Faure é inacreditavelmente uma força centrípeta, com uma voz e olhar modulados para encantar até uma cobra), em direção a um limbo. Para Bonello, este conceito seria uma fenda entre dois mundos, em um estado de meio-termo entre o sonho e o estar acordado. A concretização desta ideia abstrata se dá por uma sinfonia audiovisual de imagens fantasmas que deambulam entre olhares e mundos, esgotando diversas formas de criar uma imagem e um abandono de si mesmo.
Em um epílogo, após encerrar a narrativa e quebrar sua imersão, o realizador volta a se comunicar, como uma carta visual, diretamente com sua filha (que também serve como ponto de identificação ao público). Ainda que óbvia tanto em sua intenção, há um efeito curioso como o despertar ao fim de qualquer narrativa (fílmica, teatral etc.), sonho ou, obviamente, um coma (não é tudo igual?). É como se naquele momento, o coma pandêmico acabasse e com ela fosse embora todo o estado de alienação, com os problemas já existentes do mundo, que não se pausaram durante estes dois anos, voltassem a se impor frontalmente diante da câmera. Enquanto o mundo acaba e uma montagem reflete um fluxo de imagens nada otimistas de catástrofes naturais (degelo, queimadas, tornados, vulcões em erupções, etc.), um pai se declara para uma filha.
Coma (Idem, 2022) — França
Direção: Bertrand Bonello
Roteiro: Bertrand Bonello
Elenco: Louise Labeque, Julia Faure, Laetitia Casta, Gaspard Ulliel, Vincent Lacoste, Louis Garrel
Duração: 80 mins