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Crítica | Com Amor, Van Gogh

por Sidnei Cassal
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Antes de ser apenas um filme, Com Amor, Van Gogh nasceu como um projeto. E desde que ouvi falar desse projeto — e pude ver fotos e primeiras cenas liberadas — fiquei imediatamente apaixonado pela proposta e louco pra ver o resultado final. Receava que o filme talvez não fosse exibido comercialmente no Brasil, o que muitas vezes acontece com filmes europeus, ainda mais se tratando de uma proposta nova e experimental, sem a garantia de distribuição por um grande estúdio internacional. Felizmente o filme chegou ao nosso país (novembro de 2017) e é exibido nas principais cidades, em um número razoável de salas em se tratando de uma obra independente.

Para quem não sabe do que se trata, a proposta do filme — que na verdade é uma animação — foi visualmente tratá-lo como se tivesse sido pintado pelo próprio Van Gogh, imitando seu estilo inconfundível, suas cores, suas pinceladas. Para realizar com maestria essa empreitada participaram de sua realização nada mais que 125 pintores, que reproduziram em óleo sobre tela cada frame, cada fotograma anteriormente filmado. Para cinéfilos veteranos, talvez isso não pareça especialmente original e lembre um pouco o recurso utilizado em O Homem Duplo (A Scanny Darkly). Mas há diferenças nas técnicas empregadas e no caso de Com Amor, Van Gogh se sobressai o impacto visual causado pela técnica inconfundível do pintor holandês. Além disso, em diversas sequências da animação é possível reconhecer a reprodução de muitos de seus mais famosos quadros, que são incorporados dentro da narrativa.

Na verdade, o roteiro, além de basear-se nas diversas correspondências deixadas pelo pintor — a maioria delas, com seu irmão Theo — as incorpora na história, dando vida a diversas pessoas retratadas para a eternidade por Van Gogh: alguns membros de seu círculo familiar ou de amizade e alguns ilustres desconhecidos. Nesse ponto, a meu ver, o filme também é original e criativo, se distanciando do modelo aparentemente ultrapassado das cinebiografias. Com Amor, Van Gogh não se propõe a contar a triste história de vida do pintor mas, na verdade, a trama se passa após a morte do artista. As cenas em que ele ainda aparece com vida são mostradas apenas como uma espécie de flash-back, ilustrando as reminiscências deste ou daquele personagem com quem Armand Roulin vai fazendo contato ao tentar encontrar a pessoa mais certa para entregar uma carta perdida de Van Gogh endereçada a seu irmão.

Seguramente, um dos pontos positivos do filme é desmistificar a ideia popularmente difundida que Van Gogh era um “doido varrido”, que devia ser colocado numa camisa de força. O filme retrata, antes de tudo, Vincent como uma alma sensível e atormentada, maltratado ao longo da vida, desde sua complicada relação com a mãe, e que no final das contas não seria hoje diagnosticado como um esquizofrênico, mas talvez como depressivo e bipolar, males tão comuns atualmente. Além disso, retrata acertadamente um fato desconhecido por muitos: Van Gogh começou tarde seu trabalho como pintor e nunca frequentou nenhuma escola de artes, criando seu próprio estilo e concluindo telas em tempo recorde, numa verdadeira febre criativa. Ao longo de aproximadamente 10 anos, deixou mais de 800 telas.

Achei acertada a decisão de mostrar em preto & branco as cenas do passado, relembrado pelas palavras daqueles com quem Roulin vai conversando, tentando compreender o que realmente causou a morte de Vincent, amigo de seu pai. Há várias interpretações possíveis para o uso desse recurso. Num plano mais óbvio, reforçar a diferença entre os dois blocos em que se desenvolve a narrativa, aquele das lembranças afetadas pela memória e a versão que cada um dá aos fatos; daquele da realidade do presente, retratado em cores. Mas isso também serve para ilustrar visualmente a ideia que Van Gogh teve uma vida triste e melancólica, de certa forma cinzenta, desprovida da cor que ele soube tão bem usar em suas obras. Uma coisa é certa: após as rápidas cenas em preto & branco (devo me corrigir, pois o mais certo seria dizer que são cenas em tons de cinza), quando a narrativa volta ao tempo presente, a beleza da paleta de cores típica de Van Gogh se realça ainda mais, voltando a nos encantar e surpreender.

É possível não embarcar totalmente no desenvolvimento narrativo escolhido pelos roteiristas, mas é impossível não se render à beleza do resultado final. Arrisco dizer que desde Avatar (2009), um filme não me causava um impacto visual tão absorvente, daqueles que fazem a gente dizer ou pensar: “nunca vi nada parecido”. Já vimos filmes que experimentam misturar gêneros aparentemente distantes. Comédia com horror, ficção científica com western. Com Amor, Van Gogh experimenta unir duas formas de arte, o cinema e a pintura, que embora essencialmente visuais, são estruturalmente muito distintos. Assistir Com Amor, Van Gogh é como entrar em um museu onde as telas expostas estão vivas e te contam uma história. Um dia após assisti-lo, fiquei com uma impressão que não era bem aquela comum de querer assistir um filme novamente. Era mais do que isso. Era vontade de voltar àquele mundo, o mundo perdido de Van Gogh que o filme soube tão bem recriar.

Fica aqui uma dica: ao final do filme, não saia apressadamente do cinema. Os créditos finais reservam ainda uma interessante particularidade sobre a produção do filme, que não se deve perder. Se ao final da projeção, você ficou impressionado como eu com o resultado final e se indagando sobre a dificuldade técnica de realizar um filme como esse, sugiro acessar o site oficial do longa, e descobrir informações sobre o making-off dessa animação singular.

Com Amor, Van Gogh (Loving Vincent) – Polônia/Reino Unido, 2017
Direção: Dorota Kobiela, Hugh Welchman
Roteiro: Dorota Kobiela, Hugh Welchman, Jacek Dehnel
Elenco: Douglas Booth, Jerome Flynn, Saoirse Ronan, Helen McCrory, Chris O´Dowd, John Sessions, Eleanor Tomlinson, Aidan Turner
Duração: 95 minutos

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