O cinema de Claire Denis parece constantemente interessado, dentre outras coisas, em olhar para as dinâmicas corporais para além de um discurso regulador, taxador ou definidor de subjetividades. Desde Bom Trabalho (1999) até um de seus últimos filmes, High Life (2018), a corporeidade se apresenta menos como um objeto de investigação identitária, como é comum nos últimos anos, e mais como uma composição cênica que comporta discursividades distintas para além de um pensamento acerca de identidades e suas pluralidades, se importando até mesmo com reflexos coletivos de tensionamentos sociais, culturais e históricos – como a ressaca colonial que atinge certo cinema europeu das últimas décadas.
Com Amor e Fúria, de certa forma, herda um pouco dessa intensidade do olhar cênico de Denis acerca do balé corpóreo: de maneira menos intensa do que em Bom Trabalho, é claro, o filme procura elaborar uma mise-en-scène voltada à articulação dos sujeitos em meio ao quadro e suas tensões potenciais na busca de definir esse espaço visual – e seus aforas. Mais além: definir como se dão as relações emocionais nos limites privados desse espaço. O filme acompanha uma espécie de triângulo amoroso envolto em certa carga de mistério, vivido pelo trio de atores Vincent Lindon/Juliette Binoche/Grégoire Colin (sendo dois deles remanescentes de outros trabalhos com a diretora). Na procura de apresentar uma pretensa estabilidade do casal Lindon-Binoche, Denis esboça uma espécie de thriller dramático ao introduzir o terceiro elemento do triângulo como produto de um passado conflituoso e semi-resolvido entre todos os agentes. Assim, o filme se faz nesse entremeio entre uma formulação dramática, muitas vezes reiterada pela intimidade do plano aliada à música, e o suspense evocado pela atmosfera de sufoco desses planos e de incerteza em relação às verdades e inverdades da situação.
Nesse sentido, possui certa similaridade com outro filme de Denis da década passada, Bastardos (2013), especialmente na construção dessa atmosfera através da mise-en-scène cerceadora e do thriller. Com Amor e Fúria se faz sobretudo na esfera romântica e dramática, mas justamente seu poder sugestivo através das narratividades ocultas e sutis é o que potencializa certo aspecto de tensão. Alia-se a isso a forma de a direção filmar a intimidade, cujo enfoque nos diálogos e na câmera exageradamente próxima do rosto dos atores cria uma proximidade na relação espectador-filme que potencializa a carga dramática esboçada. E todas essas formulações culminam, por exemplo, na espetacular sequência da peça, onde Denis procura nos introduzir aos poucos em uma dinâmica cênica que vai expandindo a sensorialidade em tal nível que, quando vemos, estamos entregues de maneira hipnótica ao balé visual da direção. E através de uma hipnose que dialoga tão centralmente com a condição da personagem de Binoche que é impossível se desvincular de seus limites bárbaros e amorosos. O deleite é completo e a euforia evocada pela consumação daquele desejo antigo é o que sinaliza o momento de ápice do filme, o momento de entrega e recusa de todas as moralidades anteriores.
Em suma, Com Amor e Fúria me parece um filme que trata sobretudo do desejo. O drama pulsante se espalha pela somatória dos elementos que transformam aquela intimidade – texto, discurso e escritura como aspecto visual. Nessa ânsia de compreender a instância do desejo em meio ao jogo, perde um pouco no controle de suas próprias extensões e ocasionalmente se perde em um vai-e-vem que anula aquela hipnose anteriormente comentada. Mas ainda é um filme de Claire Denis e, como Bastardos, mesmo que não seja um grande, possui uma genialidade embutida em cada tentativa – mesmo que se apresentem como tentativas.
Com Amor e Fúria (Avec Amour et Acharnement) – França, 2022
Direção: Claire Denis
Roteiro: Claire Denis, Christine Angot
Elenco: Juliette Binoche, Vincent Lindon, Grégoire Colin, Bulle Ogier, Issa Perica, Alice Houri, Mati Diop, Bruno Polaydès, Lola Créton, Richard Courcet, Hind Darwich, Lilian Thuram, Pierre Hiessler
Duração: 117 min.