Poucos cineastas sul-americanos dedicaram-se com grande afinco às questões surrealistas ou fantásticas no cinema, explorando temas muito pessoais dentro de momentos artísticos diversos na história de seus países ou em suas nações de exílio. José Mojica Marins (Brasil), Alejandro Jodorowsky e Raoul Ruiz (Chile) são nomes que conquistaram a cena cinematográfica com obras de relevância histórica e artística nessa seara do fantástico, do surreal, do político, do provocador. Dessa tríade, o realizador mais prolífico é Raoul Ruiz, que despertou o reconhecimento da crítica após o seu exílio na França, em meados dos anos 1970.
O cinema de Ruiz é um misto de descontinuidade narrativa, experimentações imagéticas através da manipulação do cenário ou da cor e inserção do mundo fantástico, muitas vezes trazido de maneira cáustica para a realidade. O interesse pelo comportamento humano se faz presente em todas as suas obras, e a maior parte delas articulam técnicas do impressionismo francês, do surrealismo e do cinema fantástico.
Nos dramas mais realistas, Ruiz adota uma postura psicanalítica e social, trazendo das questões internas do homem algumas justificativas para viver e agir de determinada forma. Colóquio de Cães (1977) é um desses filmes. O curta-metragem tem uma história aparentemente simples, mas, aos poucos, os acontecimentos dão ao espectador a noção de um ciclo vicioso que cerca o cotidiano de uma mulher. A personagem principal é o objeto dramático e, a partir dela, histórias idênticas acontecerão com outros indivíduos à sua volta. Podemos entender aqui uma provocação do diretor ao comportamento da violência doméstica, dos crimes passionais e do “mortal instinto de sobrevivência” do homem.
Para trabalhar o assunto, o cineasta aproximou o título do filme a indicações metafóricas dentro dele. O colóquio dos cães pode ser qualquer uma das falas ou posturas da história, desde o narrador até os muitos amantes das prostitutas protagonistas. Com esse quadro polêmico e difícil de captar, Ruiz preferiu usar fotografias para representar os seres humanos em planos individuais ou de conjunto, e pequenas filmagens para mostrar o espaço da cidade e os cães que “fecham o cerco”. Do isolamento individual para a interação coletiva há um obstáculo intransponível. Ninguém se entende e acaba por fazer a única coisa possível com “mistério” que os persegue e ameaça: matam-no. Assim como a violência e agressividade de uma “conversa entre cães”, o curta-metragem atravessa as diversas atitudes puramente animalescas cometidas por um ser humano. Vale ainda lembrar que durante todo o desenvolvimento do suspense, a manipulação dos objetos fotografados alteram a visão do espectador sobre o que há na realidade e o que há no pensamento dos protagonistas. A dose de subjetividade no filme é aplicada de maneira sutil e incrivelmente sugestiva.
Algumas técnicas experimentais são utilizadas na montagem, e o resultado é um trabalho de autor que exerce sobre nós um macabro fascínio. Partindo de uma premissa banal e improvável, Raoul Ruiz entrega para o público uma bomba moral e ética, fechando o filme tão bem que não há como o espectador não “comprar a briga” ali exposta. Se há obstáculos entre as realidades do mundo diegético, eles desaparecem quando o filme termina e nós somos atingidos em cheio pelas investidas ferozes da civilização retratada, conversando, como cães raivosos, com nós mesmos.
Colóquio de Cães (Colloque de Chiens, França, 1977)
Direção: Raoul Ruiz
Roteiro: Raoul Ruiz, Nicole Muchnik
Elenco: Eva Simonet, Robert Darmel, Silke Humel
Duração: 22min.