Filmes que mexem com a nossa percepção do mundo ou confundem a nossa compreensão do espaço de um determinado enredo tendem a ganhar uma atenção extra por parte do público, por um motivo que tem muito a ver com características muito próprias da humanidade: uma tendência a querer ter as coisas sob controle, de preferência com rótulos e classificações simples; e a querer uma explicação detalhada e de preferência descomplicada para tudo o que foge à realidade comum. obras que exploram lados mais criativos e confusos da ficção científica, portanto, podem chamar muito a atenção porque nos deixam pensando por muito mais tempo que o comum, abrindo as portas para a criação de teorias, listinhas de como tudo aconteceu e justificativas ou “provas” de que o pensamento ou a interpretação das outras pessoas estão errados. Ah, a subjetividade…
Filmado ao longo de nove dias na casa do próprio diretor James Ward Byrkit, Coerência (2013) é frequentemente comparado com enredos saídos diretamente de Além da Imaginação, algo que o diretor admitiu ter sido uma influência na maneira de guiar a história, especialmente porque ele não tinha muitos recursos para rodar o filme. O que ele tinha era uma câmera e um grupo de atores talentosos para trabalhar (o elenco aqui, de fato, é muito bom). Nesse tipo de ambiente, a gente sabe o quanto vale a presença de um bom diretor e de uma boa ideia para ser filmada, especialmente se a história irá acontecer total ou quase totalmente dentro de um único espaço, exigindo cuidadosa movimentação dos atores pelo cenário, bons movimentos de câmara e precisos cortes de cena para que a trama permaneça interessante.
Um grupo de amigos se reúne para um jantar de confraternização. A noite em que isto acontece é a noite da passagem do Cometa Miller, que tem causado algumas coisas estranhas em aparelhos eletrônicos, como telas de celulares trincadas e perda de sinal de internet. O roteiro não tenta inventar muita coisa aqui; não cria diálogos repletos teorias (mas existe sim a citação de alguns conceitos físicos para alimentar a justificativa do por quê tudo isto está acontecendo), não chama muito a atenção para si mesmo, como se estivesse “curtindo” o fato de ser “inteligente demais” — afetação que faz algumas ficções científicas por aí, seja no cinema, na literatura ou nos quadrinhos, escorrer pelo ralo. Desde a cena de abertura, o texto insere a doses homeopáticas informações que servirão para construir uma base de motivações para as estranhezas que teremos pela frente, e isso funciona muito bem no filme.
O baixo orçamento sempre acaba forçando os criadores a tomarem certas escolhas estéticas, como a filmagem à noite, que ajuda a diminuir a aparência de uma pós-produção não tão cuidadosa e uma fotografia que possui seus problemas de granulação, estranha saturação em algumas cenas e momentos de cenas onde a distribuição de pontos menores de luz falha e torna partes do quadro basicamente ocultas, o que não pode ser uma escolha proposital porque falamos de lugares com personagens fazendo coisas que precisavam ser vistas. Mas tudo isso é facilmente deixado de lado pela aplaudível ideia que o diretor constrói aqui, mostrando como a passagem do Cometa Miller trouxe consequências ainda maiores do que algumas telas de celulares quebradas e ausência de internet nas casas e nos celulares.
Um “lugar de escuridão” na área próxima à casa onde tudo acontece é, na verdade, o centro de uma “roleta-russa cósmica“, que dispara algumas pessoas que passam por ali para uma realidade paralela (importante deixar isso bem claro: não estamos falando de mudanças no tempo, apenas no espaço. Em cada realidade, as pequenas mudanças de atitude de um personagem faz com que muita coisa seja diferente para todo o grupo). O conceito não é difícil de entender e a troca de personagens entre as realidades, a partir de determinado ponto da narrativa, também deixa de ser um grande mistério e sobe para a camada de grande interesse despertado, pois queremos ver quais personagens virão de outras casas-realidades para esta que estamos acompanhando, e o que eles irão fazer.
A mistura de ficção científica com uma pequena dose de terror fortalece a atmosfera de tensão, inclusive brincando com dois MacGuffins (os bastões coloridos e a ideia de que “existem versões dark de cada um“), que desviam ou viciam o ponto de vista do público, que se distrai e só depois é trazido para o que realmente importa, em termos de identificação (os objetos aleatórios dentro da caixa e o status comportamental de todo o grupo), o que faz com que admiremos ainda mais com a condução do diretor para encadear todos esses eventos diferentes e personagens. Não é um filme que realmente precise de explicação, porque qualquer espectador que tenha prestado atenção no que assistiu entende o que acontece e pode aproveitar a brincadeira sci-fi de troca de realidades, o que também acaba sendo um interessante exercício psicológico, se pensarmos bem.
Uma pena que não sobra muito espaço para desenvolvimento de personagens aqui e que muitas cenas sejam apenas reafirmações soltas e didáticas de pistas sobre o que está acontecendo, mas nada disso é capaz de tirar de Coerência a sua alta capacidade de entreter e de nos fazer pensar bastante sobre esse misterioso evento. Ao final, temos uma curiosíssima cereja do bolo, com alguém saindo da caixa das regras previamente estabelecidas e interagindo com outra realidade, mesmo após a passagem do cometa. Um toque muito bom que deixa interpretações abertas para o que de fato aconteceu ou deve acontecer a partir dali. Tomara que nunca façam uma continuação disso. Este é o tipo de filme que a reticência narrativa é o seu grande charme. Uma resposta ou uma versão detalhada para o que vem depois, ou mesmo para o que aconteceu de verdade durante essa “noite do cometa” só estragaria a ideia.
Coerência (Coherence) — EUA, Reino Unido, 2013
Direção: James Ward Byrkit
Roteiro: James Ward Byrkit, Alex Manugian
Elenco: Emily Baldoni, Maury Sterling, Nicholas Brendon, Lorene Scafaria, Elizabeth Gracen, Hugo Armstrong, Alex Manugian, Lauren Maher, Aqueela Zoll, Carrie Patterson, Kelly Donovan, Alexis Boozer Sterling, Mark Ballou
Direção: 89 min.