- Há spoilers. Leiam, aqui, a crítica de toda a franquia Karatê Kid.
Desde o começo, o grande trunfo de Cobra Kai foi o equilíbrio da manipulação da nostalgia pelo material original com o desenvolvimento de uma narrativa própria, com a relativização das características fundamentais dois mais importantes personagens, Johnny Lawrence (William Zabka) e Daniel LaRusso (Ralph Macchio). A primeira e a segunda temporadas, ambas do Youtube antes de passar para o Netflix e a série cair na boca do povo, cumpriram muito bem esse objetivo, mas a terceira, já em nova casa, privilegiou o passado em detrimento do presente, mostrando cansaço e indicando que esse caminho não teria volta.
Eis que então, no último dia do mesmo ano da temporada anterior, a quarta temporada chega para fazer justamente o que foi infelizmente prometido: fazer a série andar em falso, como um pneu derrapando na lama. Mas calma, prezados leitores! Esse atoleiro, apesar de existente e apesar de profundo, não fez a série afundar como eu temia que aconteceria. Houve mesmo muita enrolação, muito troca troca de alianças, muito “vai, não vai”, com roteiros que, como os proverbiais cão e seu rabo, correram em círculos com algumas novidades estratégicas aqui e ali, claro, mas, por incrível que pareça, depois de sete episódios assim, os três últimos vieram para não só salvar o ano, como, também, fazer a série retornar ao nível de qualidade pré-Netflix.
Ficou muito claro que os showrunners, “assustados” pelo sucesso de sua criação, tinham um problema bom em mãos: como continuar Cobra Kai de maneira significativa? Com essa tarefa em mente, tenho para mim que eles fizeram o famoso toró de palpites que lá no norte chamam de brainstorming e chegaram ao final ideal para a quarta temporada. Nele, o dojo Cobra Kai sairia solidificado como vitorioso e em franca expansão no Vale de São Fernando e os dojos Miyagi-Do e Eagle Fang acabariam derrotados, com os respectivos rabos entre as pernas. No entanto, a matemática desse “final surpresa” que coloca Terry Silver (Thomas Ian Griffith) como “rei da ilha”, armando inclusive para seu amigo John Kreese (Martin Kove) tem seus próprios elementos para complicá-la, com peças móveis de último segundo que resultaram em três episódios finais de grande categoria e que efetivamente faz o espectador ficar curioso pelo próximo capítulo na saga.
Dito isso, os showrunners tinham outro problema: como fazer com que esse final bacana, mas não tão complexo assim, exigisse sete episódios pré-trinca de encerramento para sustentá-lo? E é nesse ponto que a porca torceu o rabo e não desatou o nó completamente. Que fique bem claro que estamos diante de uma rara temporada (de qualquer série) em que sua menor parte soluciona uma boa parcela dos problemas de sua maior parte, como se ela se auto consertasse na medida em que o encerramento se aproximava. É um atestado da força dos roteiros de Hora de Diversão, A Queda e A Ascensão, que inclusive contam com as melhores coreografias de lutas – e, quando digo melhores, digo os melhores de toda a série até agora, quiçá de toda a franquia – e um campeonato que rivaliza em tensão e ritmo o do filme original.
Dito isso, vamos então ao problemas, que começam com um Terry Silver que não funciona por basicamente toda a temporada, só revelando sua cara justamente no final. Antes dele, Silver – que vem do pior filme da franquia; ou seria o segundo pior? – é um personagem à deriva, mais um adulto problemático que não tem mais nada o que fazer na vida senão manipular adolescentes para vingancinhas pessoais (todos os adultos da série são assim, a diferença sendo que alguns são mais simpáticos do que os outros). Tudo o que ele não faz desde o momento em que é introduzido até o ponto em que ele espanca Stingray (Paul Walter Hauser) – personagem paraquedista que entra para cumprir uma única função, mostrando uma certa preguiça dos roteiristas – poderia ser resumido a uma cena em um episódio. E o pior é que, nesse processo, ele carrega o próprio Kreese para baixo, cuja função se torna segurar o quimono enquanto faz cara ameaçadora. Sei bem que Silver serve como o segundo sensei para equilibrar a união-desunião-união de LaRusso e Lawrence, mas esse paralelismo é só para inglês ver, temos que ser sinceros.
E algo semelhante pode ser dito de outra introdução na temporada: o jovem Kenny Payne (Dallas Dupree Young), que sofre bullying do filho de LaRusso, corre para o Cobra Kai e aprende caratê a ponto de participar de um campeonato importante em algo como quatro semanas, um verdadeiro prodígio. Bem, seja como for, ele e, em oposição, Anthony (Griffin Santopietro), representam a “esperteza” dos roteiros em subverter expectativas. Uau, o pequenino que sofre bullying torna-se o “fazedor” de bullying. Uau, o filho do mocinho vira bandido. Ou seja, aquela típica ideiazinha mixuruca para ocupar espaço e sim, vocês acertaram, ocupar espaço para que a série possa ter seus 10 episódios regulamentares.
Para não me xingarem (muito) de crítico chato – que eu sou mesmo – os arcos do ex-moicano Eli “Hawk” Moskowitz (Jacob Bertrand) e da sofredora durona Tory Nichols (Peyton List) funcionam bem, ganhando desenvolvimento na medida certa, sem que eles sejam forçados dentro da narrativa geral. Em um, talvez dois, degraus abaixo, vêm os arcos daqueles que, em tese, seriam os adolescentes principais, Miguel Diaz (Xolo Maridueña) e Samantha LaRusso (Mary Mouser), já que tudo o que os roteiros conseguem fazer com eles é transformá-los em um casal emburrado, que se arrasta pelos cantos e que simplesmente não fala o que tem o que falar logo porque é necessário expandir a minutagem.
Deixei Johnny Lawrence e Daniel LaRusso por último (porque não, não pretendo falar da maçaneta de porta que é Tanner Buchanan e seu Robby Keene), pois, muito sinceramente, eles já deram o que tinham que dar. Sou o primeiro a defender a simpatia e o carisma de William Zabka (não sua atuação, pois ele tem a latitude dramática de Jean-Claude Van Damme ou outros desse naipe, o que não é necessariamente ruim, mas também não é essa Coca-Cola toda como dizem alguns), ao passo que sou o último a defender a ruindade geral que é Ralph Macchio, mesmo reconhecendo que sua presença é essencial à série por ele ser quem ele é (ou seja, o chato de galochas de sempre…), mas, em termos de desenvolvimento de personagens, eles chegaram a uma parede de cimento. Não há mais o que fazer de relevante com eles a não ser, talvez, afastá-los vagarosamente dos holofotes e fazer uma passagem de manto. Heresia? Talvez, mas temos que ser frios o suficiente para saber que Cobra Kai, como produto audiovisual, mesmo que os showrunners e o Netflix queiram muito, não tem substância para ficar eternamente na base dessa rivalidade constrangedora entre adultos-crianções, algo que era parte do charme da série no começo, mas que, agora, ficou só repetitivo mesmo.
Com tudo isso e, apesar dos pesares, a quarta temporada de Cobra Kai sai da enrascada narrativa que o ano anterior criou e acaba dando a volta por cima principalmente graças ao impulso de seus três excelentes episódios finais, verdadeiros salvadores da pátria. O ideal seria que o futuro da série tivesse menos episódios por temporada e retornasse ao tom levemente mais cômico original, levando-se menos a sério no processo, mas desconfio que nada mudará ou, se mudar, será para Silver tornar-se a versão carateca do Imperador Palpatine, pelo que fica a torcida para que o derramamento de baldes de nostalgia (a série inaugurou a perigosa tendência de capitalizar em cima de nostalgia de filme ruim, se formos pensar bem…) continue sendo posto em xeque por roteiros que consigam surpreender.
Cobra Kai – 4ª Temporada (Idem, EUA – 31 de dezembro de 2021)
Desenvolvimento: Jon Hurwitz, Hayden Schlossberg e Josh Heald (baseado em criação de Robert Mark Kamen)
Direção: Jon Hurwitz, Hayden Schlossberg, Marielle Woods, Joel Novoa, Tawnia McKiernan, Josh Heald
Roteiro: Josh Heald, Jon Hurwitz, Hayden Schlossberg, Joe Piarulli, Luan Thomas, Michael Jonathan Smith, Stacey Harman, Bob Dearden, Mattea Greene, Bill Posley
Elenco: William Zabka, Ralph Macchio, Courtney Henggeler, Vanessa Rubio, Martin Kove, Thomas Ian Griffith, Xolo Maridueña, Tanner Buchanan, Mary Mouser, Jacob Bertrand, Gianni DeCenzo, Peyton List, Dallas Dupree Young, Oona O’Brien, Griffin Santopietro, Aedin Mincks, Khalil Everage, Owen Morgan, Hannah Kepple, Annalisa Cochrane, Nathaniel Oh, Joe Seo, Selah Austria, Bret Ernst, Okea Eme-Akwari, Dan Ahdoot , Nichole Brown, Paul Walter Hauser, Carrie Underwood, Yuji Okumoto, Julia Macchio
Duração: 336 min. (10 episódios)