Fumaça e fogo. Pode o Cinema prever o seu próprio destino? O ato de pesquisa de material de arquivo e sua posterior montagem que constitui a base para Cinzas Digitais faz com que trechos de diferentes filmes se agrupem como uma unidade contínua, por imagens asfixiantes que são tomadas na totalidade do plano por chamas que ardem e fumaças que cegam. Essas abstrações com textura do passado, em preto-e-branco, adquire um senso premonitório, pois ainda que Cinzas Digitais até o momento não tenha ido para o presente, o extracampo do mundo real começa a se impor pelo filme, por uma fantasmagoria do real que passa a invadir o “arquivo”, que é a sombra do incêndio da Cinemateca Brasileira em 2021.
Obviamente de forte caráter metalinguístico, usando das imagens do Cinema para falar dele mesmo, é como se não só o fogo estivesse no mundo diegético de cada trecho, dentro dos planos, mas também consumisse a própria película enquanto matéria física com textura. E claro, para além disso, existe toda uma implicação que surge a partir do gesto em usar este material. Afinal, em um filme que lida com o fato de que diversas obras do acervo cinematográfico brasileiro foram perdidas, não parece haver gesto mais apropriado do que usar como potência para seu discurso as imagens em si deste cinema possivelmente perdido.
É neste sentido que entra também o papel do digital, pois é a sua existência que permite a preservação dos filmes, fazendo de Cinzas Digitais não só um olhar para o passado, mas também um manifesto da importância dos projetos de preservação no presente e para o futuro — valendo destacar que nos créditos finais é dito que o filme faz parte de uma tese de conclusão de curso sobre o papel do digital preservação.
E é interessante como o filme está sempre interessado não só em trabalhar com as imagens imagens diegéticas de filmes antigos. Como as próprias imagens de arquivo são fruto de uma exibição pela Cinemateca, integra-se a estes filmes, no canto inferior esquerdo, agora como parte indissociável deles, o seu próprio logo já conhecido, que diante dessa montagem delirante não deixa de ser um elemento visual em tela que adquire uma significação inesperada pelo incômodo que gera. Cinema é Cinemateca.
Além disso, há também a própria materialidade dos intertítulos da época do cinema mudo. Há um em específico no qual o diretor Bruno Christofoletti Barrenha parece se fixar por um bom tempo, que possui escrito a frase de que “infelizmente este negativo se perdeu”, em que ele faz um jogo de montagem reiterando as palavras escritas de diferentes formas na tela, de forma bem impositiva, fazendo os olhos se voltarem para esse tema da falta de preservação que parece atemporal na história do Cinema brasileiro, que já acontecia tanto no passado quanto agora pelos péssimos cuidados da Cinemateca pela falta de apoio governamental.
Saindo do material de arquivo das próprias imagens de Cinema, Bruno fecha sua rede de conexões indo atrás de um arquivo que é uma espécie de reportagem explorando o próprio espaço físico da Cinemateca, com uma câmera que mais parece uma entidade fantasmagórica vagando por aqueles rolos um em cima do outro do outro, ainda preservados, Há um mar infinito de filmes ali. É justamente isso se choca com a introdução de imagens fixas do acervo destruído pelo fogo, ficando nítido que os danos para a história da filmografia brasileira foram irreparáveis.
Cinzas Digitais (Digital Ashes, 2022) — Alemanha, Brasil
Direção: Bruno Christofoletti Barrenha
Roteiro: –
Elenco: –
Duração: 12 minutos