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Crítica | Cinema, Aspirinas e Urubus

Sobre companheirismo e utopias.

por Frederico Franco
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Um terreno arenoso de tons terrosos, parentes próximos do ocre e do bege. A ausência de vento faz das plantas elementos estáticos, como uma natureza morta. As árvores e demais vegetais, como os cactos, possuem uma aparência frágil, quebradiça; seus galhos, uma vez cobertos de verde, são adagas cinzentas que cortam o céu azul sem muitas nuvens. O sertão de Marcelo Gomes é uma construção imagética que beira o sinestésico. As lentes de sua câmera propositalmente se fazem mais sensíveis do que o natural: a luz vinda do sol é pouco ou nada tratada, aparecendo para o espectador em seu estado mais puro possível – como raios amarelados que machucam a visão, ardendo na pele de qualquer um que se faça presente em seu espaço de ação. A aridez da grande locação de Cinema, Aspirinas e Urubus vai além de uma conjunção de aspectos ópticos, sendo capaz transmitir seu calor sobrehumano ao público, como se nós, enquanto espectadores, estivéssemos caminhando perdidos pelo sertão, respirando seu seco ar e tropeçando em suas pedras. O diretor faz desse cenário um verdadeiro antagonista, construído como um local hostil, quase inóspito. Ambientado nos anos 1940, durante a II Guerra Mundial, estamos diante de uma região de poucos ou nenhum recurso, isolada completamente dos grandes centros da nação brasileira. Esse  é o espaço atravessado pela pequena locomotiva do alemão Johann, um dos protagonistas desse road movie intimista de Marcelo Gomes.

Em certa altura de sua viagem, Johann, vendedor de aspirinas fugido da Alemanha, aceita servir de carona para Ranulpho, um simples homem que foge das secas do sertão em busca de uma vida melhor. Os dois são pessoas oriundas de contextos diametralmente opostos, com vivências incomparáveis e, ainda mais, possuem uma certa barreira linguística – por mais que Johann fale português, nem sempre seu sotaque é compreendido ou claro. O acaso, no entanto, parece ter resguardado algo melhor para os dois viajantes. No princípio, dois estranhos. Quanto mais o tempo passa, entretanto, mais cada um deles começa a deixar livre suas entranhas e seus sentimentos mais profundos. O pequeno carro de Johann, ao longo do filme, acaba por se tornar não apenas um intermediário, mas sim um dos poucos lugares seguros e acalentadores dentro do opressivo sertão. Além disso, o automóvel serve como instrumento de proteção dos protagonistas: dentro dele, os superexpostos raios de sol não são capazes de machucar Johann e Ranulpho. A iluminação, nesses casos, já não é um elemento de agressão visual, tornando-se, inclusive, confortável. Essa construção quase antagônica que Marcelo Gomes faz entre o dentro e o fora do carro é um dos méritos centrais de toda a dinâmica entre os dois personagens. Mesmo com todas as dificuldades do entorno, ainda há espaço para aquilo que realmente importa dentro do filme: as mais sinceras relações humanas. Por mais hostil que seja o sertão, mesmo com toda sua agressividade, ele ainda não é capaz de superar a intrincada troca de calor humano proveniente de Johann e Ranulpho.

Nesse tópico específico, Cinema, Aspirinas e Urubus pode ser diretamente relacionado com uma obra mais recente: Mais Pesado é o Céu, de Petrus Cariry, lançado em 2023. Duas vidas errantes entrelaçadas pelo destino por um extenso cordão umbilical forte o bastante para marcar para sempre suas existências. É como se, invariavelmente, fossem feitos um para o outro – e aqui não se trata de uma relação romântica. Essa conexão foge do senso comum e é difícil até mesmo colocá-la em palavras. Ranulpho e Johann, atados por algo maior, extraem o melhor de si: compartilhando experiências e, principalmente, ocupando o vazio inicial de uma viagem através do opressivo sertão brasileiro. Os viajantes de Marcelo Gomes não representam apenas massas amorfas um para o outro; sua presença física talvez nem seja o mais importante nessa relação. Cada um aparenta completar aquilo que falta no outro. Ambos estão em busca de mudar completamente sua realidade de vida. Seja por meio da fuga daquilo que o oprime, ou indo atrás da promessa de um horizonte melhor. O carro de Johann, quanto mais tempo passa, vem a se tornar algo similar a um lar, um espaço seguro, uma inabalável fortaleza mental que mantém os protagonistas são e salvos dos perigos exteriores.

O último filme de Marcelo Gomes, Retrato de um certo oriente, também é marcado pela presença de uma viagem central na trama (algo bastante presente em sua filmografia, como no aclamado Viajo porque preciso, volto porque te amo). Existe, contudo, uma diferença central de como os filmes lidam com esse deslocamento. No drama de 2024, por exemplo, as viagens despertam tudo de pior. Dores, temores, abusos: excessos todos voltados para extremidades negativas das dinâmicas humanas; a paz e o descanso, só são alcançados quando não se está mais em movimento. Aqui, em Cinema, aspirinas e urubus, o aspecto de road movie traz à tona o que há de melhor no relacionamento entre seres humanos: o acalento, o companheirismo e o preenchimento desse vazio existente na viagem. A trajetória pode nem sempre ter um destino claro ou ocorrer de forma retilínea, mas ela por si só é a grande questão. Na viagem de Johann e Ranulpho o futuro parece importar menos do que a busca por ele. O horizonte dourado pouco é explorado; os protagonistas pouco falam sobre ele, não se dando ao luxo de fantasiar com aquilo que vem adiante. O futuro é deixado de lado a fim de tirar proveito do presente.

Os únicos vislumbres que se tem desse fim são explorados por meio da exibição de pequenas peças audiovisuais expostas para as populações do sertão. Johann, indo além da mera venda da aspirinas, apresenta para as pessoas encontradas no decorrer da viagem rápidos fragmentos de gravações mostrando as grandes cidades e capitais centrais do Brasil. Ali, o protagonista acaba por nutrir as esperanças daqueles que não são capazes de enxergar um futuro além dos limites do árido sertão. Mais do que aspirinas, Johann está a vender utopias. Utopias essas que nem ele próprio consegue vislumbrar em sua jornada. Por mais irônico que pareça, ele comercializa algo que foge completamente de seu alcance. 

Não é possível que nos separemos assim, antes de nos termos encontrado“, diz Júlio Cortázar. A despedida final de Ranulpho e Johann é agridoce. Ambos seguem livres, independentes, mas completamente transformados depois de terem participado ativamente da vida um do outro. A partir daí, com os dois longe de seu ambiente seguro, nada pode ser especulado de suas vidas. Dores, delícias, angústias, perigos, sonhos ou, quem sabe, mais utopias. Os protagonistas se despedem um do outro. Ao mesmo tempo em que compartilharam de uma eternidade, sua separação é feita cedo demais. Quais seriam seus destinos se continuassem juntos? Ou, até mesmo: o que teria ocorrido se nunca tivessem se encontrado? De qualquer jeito, foi muito cedo. E muito tarde. 

Cinema, Aspirinas e Urubus – Brasil, 2005
Direção: Marcelo Gomes
Roteiro: João Miguel, Paulo Caldas, Marcelo Gomes, Karim Aïnouz
Elenco: Peter Ketnath, João Miguel, Mano Fialho, Francisco Figueiredo, Arilson Lopes, José Leite, Zezita Matos, Hermila Guedes, Sandro Guerra
Duração: 99 min.

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