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Crítica | Cinco Dias no Hospital Memorial

Uma minissérie que, assim como o hospital que retrata, não funciona.

por Ritter Fan
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Eu poderia dizer que de boas intenções o inferno está cheio, mas isso seria maldade com a minissérie baseada em fatos relatados no livro homônimo de Sheri Fink que John Ridley e Carlton Cuse comandaram – inclusive dirigindo cinco dos oito episódios e escrevendo todos – para o Apple TV+, serviço de streaming pouco comentado, mas que vem fazendo sua biblioteca exclusiva crescer com grande qualidade. Para ser mais honesto – ou eufemístico – talvez seja melhor afirmar que algumas ideias funcionam maravilhosamente bem no papel, mas, em sua tradução para o audiovisual, perdem a coesão e vão se desmantelando.

Esse é o caso da relevante, mas estruturalmente estranha e claudicante Cinco Dias no Hospital Memorial, praticamente duas minisséries em uma. A primeira delas, composta pelo cinco episódios iniciais, é dedicada à crônica dos fatídicos dias no referido hospital de Nova Orleans durante e imediatamente após a passagem do furacão Katrina, no final de agosto de 2005, que resultou na destruição da cidade, na morte de quase duas mil pessoas e prejuízos materiais na ordem de 125 bilhões de dólares que, dentre outras questões, expôs o caos sistêmico dos serviços de evacuação e resgate de áreas vulneráveis a eventos desta ordem nos EUA. A segunda minissérie, de três episódios, lida com a investigação das mortes de 45 pacientes do hospital (e de uma clínica independente que ocupava o mesmo prédio) encontrados na capela do local e que vemos logo na abertura do primeiro capítulo, mortes essas consideradas em quantidade maior do que o razoável.

Dessa forma, o espectador é levado a testemunhar, nos cinco primeiros episódios, a velocidade com que um hospital em pleno funcionamento na cidade, que normalmente serve inclusive de refúgio a desabrigados em intempéries semelhantes, degringola para o caos total, como um microcosmo do desgoverno que foi incapaz de lidar, no macro, com a tragédia na região. A abordagem dessa parte inicial da minissérie, tenho para mim, é propositalmente confusa, mantendo ao máximo possível o mistério sobre o que afinal aconteceu com os pacientes do lugar, se eles morreram em razão das condições precárias com falta de luz, de equipamentos e tudo mais que decorre daí ou se eles tiveram suas mortes facilitadas (ou, no bom português, se foram assassinados) por médicos e enfermeiras. Com exceção talvez da Dra. Ana Pou (Vera Farmiga), cirurgiã que escolhe ficar por ali para ajudar no que puder, todos os demais personagens que aparecem nos cinco primeiros episódios não têm desenvolvimento algum e existem unicamente para cumprir funções específicas dentro de toda a confusão que se instala, quase que como arquétipos. Há a dirigente do hospital que não sabe absolutamente nada sobre emergências como essa, há os médicos de escalão mais alto que se mostram frios e insensíveis, um deles inclusive portando um revólver para defesa própria (diz ele), há as enfermeiras caridosas, há o médico afrodescendente que se sente perseguido constantemente (e não sem razão) e assim por diante, não passando de peças sem rosto em um tabuleiro bagunçado.

Excepcionei a personagem de Farmiga – e mesmo assim apenas parcialmente -, pois ela é a única que, de maneira significativa, transita desta primeira parte da minissérie para a segunda, em que ela passa a ser a principal investigada pelos agentes do estado da Louisiana Arthur “Butch” Schafer (Michael Gaston) e Virginia Rider (Molly Hager). Nessa segunda parte, como o foco fica eminentemente só nesses três personagens, há mais tempo de tela para cada um deles, especialmente porque tudo se passa após a momento agudo da tragédia natural. Mas mesmo nestes três episódios finais, o desenvolvimento de cada um deles é relativo e razoavelmente canhestro, ainda que, finalmente, os detalhes do que aconteceu (ou não) comecem a aparecer por meio de flashbacks de eventos que não haviam sido mostrado antes, ou seja, um artifício narrativo conveniente que só existe para tornar possível essa separação entre “antes e depois” sem que o espectador solucione o “mistério” antes do tempo.

O problema é que isso não funciona. Por um lado, cinco episódios, um para cada dia de permanência de médicos, enfermeiros e pacientes no hospital, é tempo demais para o pouco que é efetivamente mostrado, e, por outro, os três episódios de investigação são ao mesmo tempo corridos e repetitivos em relação ao que já vimos em diversos aspectos, tornando o conjunto da minissérie cansativo. Além disso, como já disse, a confusão proposital para “esconder” pistas pode ter sido uma bela ideia na fase de pré-produção, mas a conversão disso em uma minissérie acabou não funcionando, pois a estrutura narrativa que faz metáfora das informações desencontradas é, ela própria, perdida em suas intenções. E não é nem o caso de querer certeza absoluta sobre algo que realmente tem enorme complexidade e até dá azo a discussões de cunho filosófico (que nunca vão à frente, aliás), mas sim, apenas, uma obra que se sustente sozinha, sem parecer que ela não sai de seu lugar por estar carregando peso demais.

Cinco Dias no Hospital Memorial é um quebra-cabeças com ótimas e importantes peças que, porém, não se encaixam corretamente mesmo que seja para mostrar uma imagem enevoada sobre o ocorrido. A minissérie, apesar de conseguir fazer uma assustadora transição de civilização para barbárie, padece de cadência narrativa, lógica interna e de um ritmo que mantenha o espectador sempre atento aos eventos que relata. Continua tendo seu valor pelas denúncias que a duras penas faz, mas ela teria sido muito mais poderosa se John Ridley e Carlton Cuse não tivessem insistido em um formato que acaba não funcionando na prática, a não ser que o “não funcionar” seja uma metáfora para tudo o que não funcionou no Hospital Memorial naqueles fatídicos cinco dias de agosto de 2005.

Cinco Dias no Hospital Memorial (Five Days at Memorial – EUA, de 12 de agosto a 16 de setembro de 2022)
Desenvolvimento: John Ridley e Carlton Cuse (baseado em livro de Sheri Fink)
Direção: John Ridley, Carlton Cuse, Wendey Stanzler
Roteiro: John Ridley, Carlton Cuse
Elenco: Vera Farmiga, Cherry Jones, Cornelius Smith Jr., Robert Pine, Adepero Oduye, Julie Ann Emery, Michael Gaston, Molly Hager
Duração: 376 min. (oito episódios)

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