Depois de filmar Uma História Real em moldes bastante tradicionais no ano de 1999, David Lynch voltaria ao estilo surrealista com aquela que muitos (inclusive eu) consideram a sua melhor obra – Cidade dos Sonhos, clássico instantâneo deste século, lançado em 2001. Dessa vez, contudo, não se trata apenas do surrealismo enquanto estética cinematográfica, mas de um longa-metragem que usa o estilo para submergir no próprio inconsciente de sua protagonista Diane (Naomi Watts). O cinema não havia mergulhado nos sonhos de um personagem, em uma concepção psicanalítica de fato, tão explicitamente quanto a magnum opus de Lynch faria. Cidade dos Sonhos é uma rendição audiovisual ao papel que tudo o que recalcamos e que emerge durante nossos sonhos pode dizer sobre nós mesmos. Um projeto de uma audácia sem par e que poderia ter fracassado completamente não fosse guiado pela engenhosidade de Lynch.
Em primeiro lugar, é preciso compreender que Cidade dos Sonhos não é, como alguns incautos dizem, apenas um desafio vazio e pedante ao espectador, que se vê impelido a decifrar uma infinidade de códigos e signos que se tornam ainda mais numerosos a cada vez que revemos o filme. É claro que uma obra tão enigmática e tão simbólica tem sim esse efeito sobre o público, mas as razões e os métodos pelos quais o diretor propõe esse jogo a seu interlocutor são o que tornam essa obra verdadeiramente genial. O que Lynch deseja é comungar com seu público uma experiência semelhante à de um psicanalista escutando o emaranhado narrativo contido no sonho de seu paciente. A história dolorosa de Diane, uma jovem atriz que chega a Los Angeles (a terra de Hollywood) almejando o estrelato e que só encontra frustrações artísticas e também amorosas em seu amor não correspondido por Camila (Laura Harring), é onírica desde o travelling em direção ao travesseiro vermelho até o mesmo movimento de câmera para dentro da caixa azul.
Praticamente todo o filme se passa em estado de sonho e por isso tantos elementos narrativos (não desejo revelar ou esmiuçar todos para que a experiência do leitor não se empobreça) não guardam a esperada coerência entre si. David Lynch chama a atenção a todo momento para isso. Na cena do café Winkie’s, em que Betty (alterego onírico da protagonista Diane) contrata um assassino para matar Camila, as xícaras sobre a mesa estão sempre viradas para cima, exceto no plano final, quando aparecem para baixo. O diretor nos dá a pista de que tudo o que ali se passara era um sonho. O mesmo ocorre na cena em que Betty e Rita (alterego onírico de Camila) se conhecem. A primeira conhece a segunda na casa de sua tia Ruth e causa estranhamento imediato que a tia sequer saiba da presença de Rita dentro de sua própria casa. Essas situações inverossímeis vão recorrendo, demonstrando que o que une toda a história é a interpretação dos símbolos e não a linearidade e a plausibilidade lógica dos acontecimentos. David Lynch constrói o inconsciente recalcado de Diane como um arquiteto elabora o seu projeto.
Muitos elementos localizados entre o delírio e a fantasia também vão se colocando na história. O monstro-mendigo pode ser lido como uma representação visual do conteúdo inconsciente de Diane. Representaria ele a culpa da protagonista por encomendar a morte de sua amada? Ou quem sabe o sentimento de fracasso e o ressentimento da personagem por seu insucesso amoroso e profissional? Nada é certo ou hermético em Cidade dos Sonhos. Por isso, eu mesmo, enquanto crítico, não cometeria a irresponsabilidade de fechar interpretações. O mais interessante é experenciar o sonho de Diane. Notar, por exemplo, como se manifesta em sonho a sua própria visão inconsciente acerca do mundo de Hollywood – a sua terra prometida, representada na figura de produtores que mais parecem gangsters, reunidos para decidir os destinos das pessoas como se fossem peças em um tabuleiro. A raiva que ela sente do diretor Adam (Justin Theroux), que dera o papel principal de um filme a Camila, emerge em seu sonho como uma série de tragédias pessoais que desgraçam a vida dele. O espectador não deve fazer tantos esforços para interpretar tudo, mas sim sentir o que Diane diz através de seus sonhos.
A complexidade do roteiro de Cidade dos Sonhos é acompanhada pela qualidade inegável dos outros elementos do filme. David Lynch capricha em seus movimentos de câmera e em sua direção de atores. Não me recordo de um olhar de ódio tão possante quanto o representado por Naomi Watts na cena em que sua personagem vê Camila com Adam. Méritos também para a atriz, mas, nesse filme, Watts – uma atriz que nunca havia me enchido os olhos até então – produz a melhor interpretação de toda a sua carreira em minha opinião. O diretor é brilhante também ao criar ilusões no espectador, como na cena em que Diane sonha com seu supostamente exitoso teste para o papel principal do filme. Logo após, Lynch recria uma cena esteticamente muito parecida, mas um travelling out desconcertante e inesperado evidencia mais uma vez que nem tudo é o que parece nessa história e que o inconsciente desejante de Diane é o que rege todas as ações, lembranças e impressões em Cidade dos Sonhos.
Lynch evoca o tom de suspense dos filmes noir em muitos momentos, a exemplo da cena em que Betty e Rita invadem uma casa e encontram um corpo putrefato, com um tiro na cabeça, deitado na cama. O momento culmina com elementos de terror que Lynch já provara saber usar tão bem em filmes como Easerhead e O Homem Elefante. Participa dessa e de muitas outras passagens uma trilha sonora minimalista e obstinada, que cria um ambiente sonoro perfeito para o desenvolvimento das cenas de suspense e mistério. É como se o inconsciente ruidoso e incessante de Diane não descansasse um só instante, ainda que, contrariando o senso comum, a sua manifestação se desse em sonho. Além disso, é impossível não destacar também a cinematografia da obra, que usa desde um leve desfoque nas passagens mais oníricas até tonalidades menos saturadas e mais frias nas cenas em vigília, quando a realidade da protagonista se impõe a ela.
Mas o grande questionamento a respeito de Cidade dos Sonhos continua sendo: por que construir uma história baseada em sonho, de modo a torná-la tão desafiadora e ilógica a priori? Penso que a mesma história poderia ter sido contada de outros modos e com muita eficácia. Poderíamos ter assistido a uma crítica intestina poderosíssima ao mundo de Hollywood. Ou quem sabe a um thriller imbatível sobre um crime e o seu castigo. Ou ainda a uma inesquecível história de amor com idas e vindas e direito a toda sorte de sofrimento e desencontros. Mas nada disso seria Cidade dos Sonhos, afinal, o que David Lynch deixa claro é que nem tudo sobre nós pode ser dito por “nós mesmos”. Freud, em A Interpretação dos Sonhos, texto seminal da psicanálise, explica que nosso material recalcado às vezes só poderá ser acessado pela via dos sonhos. Tanta dor e tanta culpa, como as que encontramos em Diane (e em nós mesmos), possivelmente só se revelariam ao público desse modo tão heterodoxo. Nesse sentido, a obra-prima de David Lynch é um dos estudos de personagem mais originais e disruptivos que o cinema já viu. Um verdadeiro tour de force rumo ao inconsciente humano.
Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive, 2001 / EUA)
Direção: David Lynch.
Roteiro: David Lynch.
Elenco: Naomi Watts, Laura Elena Harring, Justin Theroux, Ann Miller, Dan Hedaya, Brent Briscoe.
Duração: 145min.