Como continuações são inevitáveis, a ideia de dar sequência ao clássico cinematográfico moderno brasileiro Cidade de Deus na forma de série foi uma escolha acertada, ainda que houvesse boas chances de a transição de mídias criar problemas narrativos se as necessárias adaptações de linguagem não fossem feitas. No entanto, a produção da HBO com a O2 criada por Bráulio Mantovani, roteirista do longa original, talvez tenha como principal característica justamente ter sabido muito bem caminhar sem soluços ou fricções sensíveis de filme para série, resultando em uma obra que expande e atualiza o universo original a partir de um salto temporal de algo como 20 anos desde os eventos abordados no filme, levando a história para o começo do século XXI.
Nessa toada, Alexandre Rodrigues retorna ao papel de Buscapé que o celebrizou, agora como um fotógrafo jornalístico renomado que deixou a Cidade de Deus para trás, ainda que mantenha profundos laços com a comunidade, laços esses marcados por sua amizade com Barbantinho, vivido por Edson Oliveira, e com a existência de sua mãe carinhosa e de sua filha ressentida por lá. Como no longa, Buscapé é o protagonista e o narrador, com Rodrigues funcionando melhor como ator do que como narrador, já que, nessa segunda função, ele parece que está lendo diretamente do papel, sem naturalidade, mas os rumos da história vão muito além do personagem central, abrindo espaço para diversos outros personagens antigos e novos serem devidamente trabalhados.
Confesso que o começo da série, algo como o terço inicial, deixou-me com uma impressão ruim dela, já que há um investimento de tempo grande demais na explicação didática do novo status quo da Cidade de Deus, um quem é quem interminável que se vale demais da nostalgia, inclusive com cenas do longa de 2002, para fisgar o espectador, o que acabou tendo o efeito contrário comigo. Quem segura de verdade esse começo é a carismática presença de Marcos Palmeira como o chefe do tráfico Curió, uma escalação inspirada a que o ator agarra-se com vontade. Em paralelo, vale destacar, também, Andréia Horta como Jerusa/Crazy, advogada e namorada de Bradock (Thiago Martins), filho adotivo de Curió que ela tira da prisão bem no começo da temporada e começa a manipulá-lo no melhor estilo Lady Macbeth em uma atuação deliciosamente ardilosa.
No entanto, apesar de a temporada ser curta, com apenas seis episódios, com quase dois deles sendo usados para contexto, quando a história realmente começa, ela engrena de verdade, com duas linhas narrativas principais, uma sobre a guerra entre Bradock e Curió e outra sobre a investigação de Buscapé ao lado da jornalista vinda da Espanha Lígia (Eli Ferreira) que serve de veículo para que o lado da corrupção policial e dos políticos ganhe relevo, valendo destaque para a ótima reutilização de Cabeção (Kiko Marques retornando ao seu papel), antes um “mero” policial corrupto, agora um Secretário de Segurança corrupto. Os desenvolvimentos narrativos dessas duas linhas macro apoiam-se em tropos do gênero, mas qualquer um minimamente conhecedor da podridão dos jogos de poder principalmente nos maiores centros urbanos do país sabe muito bem que, infelizmente, esses tropos são a mais pura realidade e Mantovani, que também corroteirizou os dois Tropa de Elite, não só tem vasta experiência com isso, como sabe usar esses elementos para construir um quebra-cabeças que, a cada nova peça encaixada, revolta o espectador.
E o melhor é que, em meio às pinceladas mais amplas sobre a violência entre bandidos e a corrupção sistêmica, a temporada consegue ter tempo para trabalhar alguns expoentes da comunidade, começando pelas versões adultas de Barbantinho, agora candidato a vereador, e de Berenice (Roberta Rodrigues também voltando ao seu papel do filme), uma líder natural que é casada com PQD (Demétrio Nascimento), ex-soldado que se debate entre mergulhar na criminalidade ou ficar passivo. O crescendo de Berenice ao longo da série é um belo exemplo de construção narrativa sólida e de uma atuação capaz de criar imediata empatia seja pela luta da personagem, seja pela força que transmite a cada linha de diálogo, seja em momentos carinhosos com PQD, seja na belíssima sequência climática do penúltimo episódio. Diria que a única trama paralela que fica talvez descolada demais da série como um todo é que a envolve Leka (Luellem de Castro) e sua dupla de amigas querendo despontar na indústria musical que acaba tendo um desenvolvimento acanhado, com Leka só realmente servindo para criar o pano de fundo de arrependimento e passado complicado para Buscapé, já que ela é a filha que ele deixou na Cidade de Deus quando se mudou para a Zona Sul. Vale dizer que até mesmo Bradock é abordado com muito mais nunces do que apenas a do “bandido violento”, com Thiago Martins realmente sabendo encarnar um homem fraco e manipulável, carregando enormes pesos de dor e culpa por seus atos sobre seus ombros.
A direção de fotografia de Cristiano Conceição que, apesar de ter trabalhado nas segundas unidades do longa original e de Tropa de Elite, resiste à tentação de imitar o visual da obra de Fernando Meirelles e Kátia Lund, preferindo, acertadamente, aproximar-se da de José Padilha, mas sempre mantendo e estabelecendo um verniz próprio que é cinético, mas ao mesmo tempo cuidadoso ao trabalhar cada núcleo com uma assinatura própria e fazendo das fotografias de Buscapé elementos que levam a transições de qualidade que existem a favor e não contra a unidade da narrativa. Outro destaque é a direção de arte que, mesmo se valendo de filmagens em locação (não sei se na Cidade de Deus ou alguma outra comunidade), tem voz própria que facilita e muito a imersão do espectador na narrativa assim que ela deixa para trás o excesso de passado e começa a encarar o presente e o futuro.
Cidade de Deus: A Luta Não Para é uma herdeira digníssima do clássico moderno que a inspirou, não parecendo, apenas, mais uma daquelas continuações que se esmeram ou em fazer mais do mesmo, ou em falar do vazio. Há importantes mensagens e críticas nos roteiros, algumas com peso de didatismo – mas que eu encaro como necessário já que muita gente ainda teima em achar que “todo favelado é bandido” – e outras que desnudam uma politicagem nojenta que causa embrulho no estômago de qualquer um que tiver um mínimo de compreensão sistêmica da máquina de corrupção que é e sempre foi o sistema político brasileiro (e não só o brasileiro…). O segundo capítulo da “saga” termina com a 1ª temporada da série, mas há espaço de sobra para ela continuar e eu espero que ela efetivamente continue.
Cidade de Deus: A Luta Não Para – 1ª Temporada (Idem – Brasil, 25 de agosto a 29 de setembro de 2024)
Criação: Bráulio Mantovani (baseado no filme de Fernando Meirelles e Kátia Lund, por sua vez baseado em livro de Paulo Lins)
Direção: Aly Muritiba, Bruno Costa
Roteiro: Renata Di Carmo, Rodrigo Felha, Sérgio Machado, Aly Muritiba, Armando Praça, Estevão Ribeiro
Elenco: Roberta Rodrigues, Alexandre Rodrigues, Edson Oliveira, Dhonata Augusto, Andréia Horta, Thiago Martins, Marcos Palmeira, Shirley Cruz, Sabrina Rosa, Luellem de Castro, Kiko Marques, Demétrio Nascimento
Duração: 464 min. (seis episódios)