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Crítica | Cidade das Sombras (1998)

por Mister Charles
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  • Obs.: A versão analisada é o corte do diretor, que possui um acréscimo de 11 minutos com relação ao corte exibido nos cinemas.

O que torna nós, seres humanos, tão diferenciados? Seria nossa capacidade de pensamento racional desenvolvida ao longo de milhares de anos de evolução, ou seriam as dezenas de sentimentos que somos capazes de vivenciar? Ou trata-se, talvez, da habilidade de fazermos parte de uma sociedade de maneira individual e/ou coletiva? Em outro aspecto, até que ponto podemos ter total certeza daquilo que nossas memórias dizem sobre algo? Afinal, quem nunca se pegou enganado sobre alguma coisa que tinha a total certeza de estar certo? E o quanto isso pode influenciar nas decisões e na personalidade de um indivíduo dali em diante?

Essas são algumas das muitas questões que Cidade das Sombras, filme de Alex Proyas roteirizado pelo mesmo ao lado de Lem Dobbs e David S. Goyer, busca aguçar na mente de seu espectador. Trata-se de uma obra concebida de maneira absurdamente minuciosa por seus realizadores, desde os minutos iniciais; em função disso, ouso dizer que talvez uma única visitada não seja suficiente para capturar tudo aquilo que o universo construído tem a nos oferecer.

John Murdoch (Rufus Sewell) é nosso condutor ao longo da projeção, pois vamos aprendendo sobre aquele mundo na medida que o protagonista da história o faz. Na sua primeira aparição, ele acorda em uma banheira de um ambiente mal iluminado, sem saber como ou porquê foi parar ali: ele percebe um machucado na testa; repara numa espécie de seringa quebrada no chão; estranha um par de sapatos feito novos sobre uma cadeira; e, por fim, se espanta com uma garota morta no chão, junto da cama. A partir daí, John passa a ser suspeito de assassinato e é perseguido pelo inspetor de polícia Frank (William Hurt), além de ser caçado por indivíduos misteriosos chamados simplesmente de Estranhos, que possuem poderes telepáticos. Em meio a isso, ainda descobrimos que ele é casado com Emma (Jennifer Connelly) e que o médico Daniel (Kiefer Sutherland) parece estar a par de toda a situação, mesmo que soe pouco confiável.

Cidade das Sombras é conduzido por Alex Proyas de maneira fluída e compacta, e o cineasta faz um trabalho formidável ao passear pelas diversas camadas que o longa possui: uma ficção científica misturada com drama existencial acrescido de uma história de amor mesclada a um filme policial com pitadas de cinema noir. Do mesmo modo, o trabalho do trio de roteiristas é de grande importância ao amarrar todas as pontas da narrativa, inserindo as respostas para as inúmeras perguntas de maneira orgânica, com exceção de um ou outro momento, onde os diálogos expositivos acabam prejudicando pontualmente o curso natural da história.

Enquanto isso, os trabalhos do design de produção de George Liddle e Patrick Tatopoulos, do diretor de fotografia Dariusz Wolski e do departamento de som são fundamentais para o funcionamento do filme. A começar pelos ambientes externos: as ruas úmidas emanam fumaça enquanto o vento assobia, e os edifícios escondidos nas sombras têm um aspecto um tanto gótico. Já os interiores vão desde ambientes com azulejos gastos e sujos até locais com divisórias e móveis de madeira que geram certo aconchego, passando por assoalhos que rangem quando são pisados, em um tratamento excepcional de seus realizadores.

E a iluminação dos cenários internos, mesmo que pouca, é suficiente para que a dupla de designers consiga utilizar, na decoração, cores que destoam e que se façam ver, principalmente o marrom e o verde – decorações essas que, diga-se de passagem, surgem com um aspecto retrô graças à fotografia de Wolski, o que combina com a atmosfera mais antiquada característica do universo visto nas telas. Por fim, a concepção dos Estranhos com uma cor de pele extremamente pálida e cabeças raspadas (um aspecto quase que doentio) e figurinos escuros remete a um visual fantasmagórico, enquanto que o local em que eles se reúnem é composto por corrimões e escadas retorcidas e ambientes metálicos – esse último traduzindo a frieza da personalidade dos mesmos.

Assim, Cidade das Sombras se revela como uma obra ambiciosa ao levantar questões que encontram ecos na natureza humana tanto dos personagens criados quanto para nós, no lado de cá da tela. A escuridão que toma conta da película torna nossa experiência um tanto angustiante, mas o primor visual do longa é soberbo. Contando ainda com atuações regulares em um elenco que sabe seu lugar, a única ressalva fica para Kiefer Sutherland com seu médico Daniel, onde o ator escolhe por fazer breves pausas a cada palavra que fala – o que, ao invés de transformar o personagem em uma figura excêntrica, surge caricata.

Volto então, enfim, à pergunta que abri o texto: o que torna nós, seres humanos, tão diferenciados? Para Proyas e seus colegas roteiristas, a resposta se encontra na cena que John e Emma Murdoch conversam na delegacia. Tratando-se de um filme predominado pela escuridão e pelas sombras, tal resposta surge como uma doce e gratificante ironia.

Cidade das Sombras (Dark City, Austrália/EUA, 1998)
Direção: Alex Proyas
Roteiro: Alex Proyas, Lem Dobbs e David S. Goyer (com história de Alex Proyas)
Elenco: Rufus Sewell, William Hurt, Kiefer Sutherland, Jennifer Connelly, Richard O’Brien, Ian Richardson, Bruce Spence, Colin Friels, John Bluthal, Mitchell Butel, Melissa George
Duração: 111 min.

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