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Crítica | Christine – O Carro Assassino

por Giba Hoffmann
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Christine – O Carro Assassino marca o encontro entre dois nomes gigantes do horror. De um lado, o fenômeno editorial Stephen King, recebendo nada menos que a terceira adaptação cinematográfica de uma obra sua apenas no ano de 1983 (após Cujo e A Hora da Zona Morta). Do outro, o mestre John Carpenter, negociando sua sobrevivência no showbiz com o sistema dos grandes estúdios após a injusta má recepção de O Enigma de Outro Mundo. Um encontro como esse tinha tudo para gerar, no mínimo, um belo clássico cult dos anos 80. No entanto, é fato que Christine, após uma recepção comercial boa, dificilmente é lembrado em lugar de destaque, seja na filmografia de Carpenter, seja na lista de adaptações de obras de King. Qual seria o motivo para a recepção morna da obra, mesmo dentre os entusiastas do gênero?

A premissa do filme, explicitada em seu subtítulo nacional, chama a atenção antes de tudo pelo aspecto nonsense, para não dizer plenamente risível. Não que “um carro assassino chamado Christine” seja, por si, um conceito impossível de servir de base para um bom horror. A história do gênero prova que o horror não apenas pode surgir de lugares e situações inusitadas, como que este frequentemente acaba por ser o caso. O desconforto da imprevisibilidade sempre joga uma parte central nesse campo, e é justamente onde as tramas de King preferencialmente se desenvolvem e procuram fisgar o leitor. A trama do filme derivando, em grande parte, de uma adaptação relativamente fiel ao livro, embora diferindo – favoravelmente ao filme – em alguns pontos-chave, o que temos é uma rendição limítrofe entre o famoso “terrir” e, pelo menos, lampejos do charme provocativo do horror de John Carpenter, ainda que carente de bons momentos de terror propriamente ditos.

A proposta de um carro possuído surge aqui sobre o pano de fundo de um típico drama adolescente norte-americano, ambientando-se em uma cidade interiorana no final dos anos 70. Arnorld “Arnie” Cunningham (Keith Gordon) é o arquetípico nerd da época, lidando com os problemas de sua impopularidade na escola bem como com a severidade de sua mãe Regina (Christine Belford). Para tanto, ele conta com a ajuda sempre presente de uma única e valiosa amizade, o popular Dennis Guilder (John Stockwell). Tudo em suas vidas muda após Arnie vislumbrar um sucateado Plymouth Fury 1958 vermelho, abandonado em meio às tralhas da casa do velhote sinistro George LeBay (Roberts Blossom). O carro, que possui vontade própria e um instinto de autodefesa focado em sufocamento de potenciais ameaças, desperta no jovem um inexplicável interesse que rapidamente degenera em obsessão. Acompanhamos sua estranha trajetória através de uma narrativa que destaca a pontuação de datas ao mesmo tempo em que o faz de forma um tanto inconstante, como se alternássemos entre um estilo fatual-realista e uma narrativa mais fluída.

Assim, a proposta do carro assassino não é aqui a mesma contida no clássico do SBT O Carro, A Máquina do Diabo (1977), ou seja, não se trata de um filme de monstro onde quem assume o papel de antagonista acontece de ser um automóvel, mas o que vemos na verdade são temáticas mais alinhadas ao estilo de King: possessão, vingança, drama adolescente e familiar (com uma pitada de uma mãe terrível que, no final das contas, provavelmente nem era tão terrível assim). De forma que, surpreendentemente, um filme de horror com classificação R sobre um carro assassino apresenta níveis baixíssimos de violência explícita, decisão que afeta o filme positivamente de maneira geral, embora não sem seu preço. Grande parte disso parece se dever ao enfoque dispensado pelo screenplay de Bill Phillips e pela direção de Carpenter no esforço de adaptação do romance original.

Frente ao desafio de adaptar a prosa tipicamente alongada de King, a produção do filme acaba por descartar o tema da possessão do carro, que no livro recebe uma explicação direta e acaba sendo relevante no desenvolvimento da trama e que aqui aparece resumida à afirmação: “este carro é muito, muito mau”. Além disso, pode-se dizer que mesmo o tema da vingança de Arnie contra Buddy Repperton (William Ostrander) e seu bando de bullies é relegada para segundo plano, em favor da arrepiante obsessão do jovem pelo carro, que adquire centralidade e um sentido bastante diferente daquele que é apresentado no livro. É em torno deste eixo que o filme apresenta seus melhores momentos. A obsessão de Arnie por seu carro, especialmente quando ganha contornos eróticos, é o que sustenta alguns dos momentos mais arrepiantes do filme, com destaque especial para a cena no drive-in, onde Christine tenta sufocar Leigh após um ataque de ciúmes, ou ainda a cena onde, após ser arrebentada pela gangue de Buddy, Christine revela para Arnie sua capacidade auto-regenerativa, ao que ele se afasta e observa fascinado (“Show me!”) a reconstrução do carro (magistralmente realizada com efeitos práticos) como se assistisse a um strip-tease.

Assim, a mudança no foco da relação entre Arnie e Christine beneficia o filme ao trocar o tema da possessão (que, ainda que bem executado, poderia dar destaque, por contraste, aos contornos mais bobos da trama) pelo aspecto extremamente creepy dos sentimentos do jovem pelo carro. Mesmo ao fazê-lo, a execução é bastante econômica (com apenas um momento propriamente dramático, quando Arnie explica ter tido interesse na sucateada Christine por nunca ter visto algo tão feio quanto ele) e não foge da galhofa, especialmente com o aspecto visual do jovem que, do nada, deixa de usar óculos, adota um estilo rockabilly e se torna o conceito adolescente do que seria um perfeito babaca – quase que um precursor oitentista à malfadada sequência de Peter Parker “malvado” em Homem-Aranha 3. Ou seja, ao mesmo tempo em que a direção de Carpenter é precisa na atenuação de alguns dos pontos mais bobos da trama e na construção de uma ambientação séria, ainda que nunca propriamente tensa, o filme encontra tempo o suficiente para tomar distância e se fazer confortável em seu próprio absurdo, o que também atua em seu favor.

Mesmo asssim, o meio do filme acaba por sofrer de um certo arrastamento que atua contra a construção de tensão, com Arnie cada vez mais fora de foco e Denis internado após um acidente (aparentemente sem relação com Christine, embora ela estivesse lá, “secando” ele com seus faróis) em um jogo de futebol americano. É aí que chama a atenção o fato de que a relação de Arnie com a namorada Leigh Cabot (Alexandra Paul) acaba se provando um ponto fraco no desenvolvimento da trama, não substituindo bem a interessante dinâmica entre Arnie e Dennis. Necessária aparentemente para uma boa exploração do aspecto do ciúme, a relação amorosa surge de forma repentina e nunca convence realmente. A personagem de Leigh não possui desenvolvimento algum e age exclusivamente segundo a conveniência da trama, em detrimento de momentos que de outra forma poderiam ser excelentes, como a cena do cinema drive-in na chuva. Seu ciúme e ódio repentinos por Christine são uma das coisas mais bobas no filme (e estamos falando de um filme onde um carro “se aperta” num beco estreito para atropelar uma pessoa), surgindo de forma inexplicada e simplesmente não fazendo sentido. Justamente para emprestar alguma gravidade à situação sobrenatural entre Arnie e Christine, a reação realista do elenco de apoio se apresenta como essencial e, enquanto o papel é bem cumprido nas relações com a mãe de Arnie (que no entanto desaparece sem deixar rastros no último terço da película) e principalmente com Dennis, o namoro de Arnie acaba apresentado de maneira totalmente caricata e, com isso, tem dificuldades para convencer mesmo o espectador mais generoso.

O que se inicia como um típico drama adolescente dá lugar a uma subversão dos clichês do gênero, com o amigo jock do nerd unindo-se à “garota dos sonhos” Leigh para tentar colocar um fim em sua absurda e violenta vingança contra aqueles que o perseguiam. Tudo fica interessante pelo fato de que a própria natureza desta vingança é deixada em suspenso para o espectador, uma vez que a direção astutamente evita revelar se o carro, nos momentos de suas perseguições assassinas, era dirigido por Arnie ou se Christine agia sozinha. Há como que uma mudança de ponto de vista no desenrolar da história, de forma que vamos nos distanciando de Arnie e tendo acesso ao ponto de vista de Denis e Leigh. Se no início do filme o espectador tende a se solidarizar com a situação de Arnie, que sofre uma perseguição gratuita bastante violenta (que tipo de escola Stephen King frequentou?), o personagem rapidamente se revela uma figura facilmente detestável, tão cedo quanto o primeiro conflito com seus pais, onde teoricamente deveriamos ainda estar construindo o personagem dele. Não se trata apenas da revolta adolescente típica, mas de uma postura essencialmente babaca do personagem, mesmo antes de toda a loucura envolvendo seu carro. Certamente se trata de algo intencional, como fica claro no paralelo com Roland LeBay, primeiro dono de Christine, que segundo o irmão nunca amou nada no mundo que não fosse o carro. Arnie não é um cara legal que foi seduzido e possuído pela maldição de Christine, mas o fato de que ele fora seduzido parece revelar algo sobre ele que até então não se suspeitava. O problema é que o personagem permance de alguma forma indefinido, tendo pouco protagonismo no lidar com a situação, exceto se apresentar como uma pessoa facilmente “desgostável”. Neste sentido a história parece não se decidir entre ser uma vingança com um final desastroso, uma tragédia ou simplesmente se assumir como um horror descompromissado. Essa dúvida não sinaliza necessariamente um ponto fraco, mas tem parte na dificuldade do filme em ressoar algo de especial e no sentimento predominante de medianidade.

O que falta em consistência narrativa, ganha-se em ambientação. É notável que nenhum atropelamento se dê de maneira explícita, o que parece uma decisão consciente da equipe produtiva em priorizar a ambiência sobre o choque da violência gráfica. O aspecto aterrorizante da violência de que é capaz um carro desgovernado (ou, ainda pior, governado por forças demoníacas) é totalmente ignorado em favor de perseguições mais pontuais, todas elas retratando as mortes de forma indireta, frequentemente com cortes e fades. O ganho é evidente pelo fato de que Christine parece realmente ganhar vida e personalidade nessas sequências, e aqui o mérito é todo da direção e produção, com um belo trabalho de câmera e uso de efeitos práticos. Merecem destaque as sequências onde Christine ataca Buddy e seus amigos, inicialmente em seu carro e depois em um posto de gasolina (de onde emerge em chamas em um dos melhores visuais do filme), bem como a batalha final na garagem, contra Dennis e Leigh em uma escavadeira. Bem dirigidas e fazendo excelente uso de efeitos visuais práticos, são cenas que, combinadas com a escolha temática de músicas incidentais dão o necessário toque autoral de John Carpenter que justifiquem seu nome no título para além do simples contracheque do estúdio.

Além disso, também vale ressaltar o bom uso feito pelo diretor de canções de R&B e rock clássico para embalar muitas das ações maléficas de Christine, o que contribui efetivamente para a construção de uma atmosfera da época. Em contraste com as (infelizmente poucas) composições originais de trilha sonora, com a marca inconfundível dos sintetizadores analógicos do diretor, o acompanhamento sonoro do filme se prova um de seus pontos mais fortes, ajudando na orientação de uma trama cuja tonalidade emocional por vezes escapa à audiência. A escolha de Bad to The Bone, de George Thorogood and the Destroyers, como tema principal para Christine exige ser pensada sob o ponto de vista da época para que possa ser avaliada de forma justa. Destinada a aparecer posteriormente em O Exterminador do Futuro 2 e, a partir daí, ganhar contornos de referência em maldade caricata, na época consistia em um lançamento relativamente desconhecido e apresentava-se como uma canção marcante e bem alinhada com a tonalidade geral da trama, ainda que a escolha de um lançamento contemporâneo para a cena introdutória, que mostra a fabricação de Christine em 1958, possa ter causado alguma estranheza.

Assim, os maiores acertos do encontro entre King e Carpenter na telona se dão, como se poderia esperar, segundo alguns dos pontos fortes que marcam o estilo autoral de cada um. Porém, infelizmente não se trata da intersecção dos dois modos revolucionários de se fazer horror, mas sim de uma direção extremamente competente, porém que joga seguro ao enfatizar e explorar bem os elementos mais extravagantes da trama de King, às custas de relegar o suspense e a tensão circunstancial das cenas de conflito com o sobrenatural para segundo plano, em favor de um filme sólido, tonalmente bem ajustado, porém sem nunca Se aventurar em impactos emocionais para além do superficial, como um bom filme de terror deve ser capaz de fazer. Sua medianidade deve-se, ao menos em parte, a uma abordagem assumidamente conservadora de Carpenter em relação ao material original, que provavelmente advém de um misto entre as exigências do estúdio e a própria motivação baixa do diretor em moldar a obra segundo sua visão mais particular, em se tratando de um trabalho contratual onde o diretor parecia lidar circunstancialmente com as propostas que lhe chegavam às mãos, processo que desaguará, no ano seguinte, em Starman – O Homem Das Estrelas, outro trabalho contratual para um estúdio onde o estilo próprio de Carpenter se faz valer de maneira mais efetiva. Não sendo necessariamente um sucesso mas certamente longe de um fracasso, Christine se instala bem nesse meio termo como um bom entretenimento, ainda que, no limite e em comparação com as obras que lhe são adjacentes, acabe por se apresentar em certa medida como plenamente esquecível – ou seja, pelo menos sempre passível de ser revisitado.

Christine – O Carro Assassino (Christine) — EUA, 1983
Direção:
 John Carpenter
Roteiro: Bill Phillips (baseado no romance Christine, de Stephen King)
Elenco: Keith Gordon, John Stockwell, Alexandra Paul, Robert Prosky, Harry Dean Stanton, Christine Belford, Roberts Blossom
Duração: 110 min.

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