Há um fato de bastidor em relação a este filme que se tivesse se concretizado, o resultado final da obra poderia ser bem melhor. O fato é que esta animação foi inicialmente oferecida ao diretor Hayao Miyazaki, mas não foi possível que ele assumisse a direção porque insistia em mudar todo o conceito relacionado aos gatos no filme. E também pudera: o plot dos gatos e seus testículos é uma das coisas mais bizarras encontradas em uma animação onde o tema central não tem nada a ver com felinos. Mas vamos com calma. Falemos, inicialmente, de Chie.
A pirralha do título mora em Osaka e toma conta do pequeno bar do pai, um brutamontes vagabundo que passa o dia batendo perna, arrumando briga e gastando dinheiro com jogos de azar. O contexto familiar é a pedra angular do filme e Chie é a estrela desse núcleo, servindo de ligação entre seu pai e seus avós e mantendo contato com a sua mãe, que foi embora por não suportar mais o comportamento do marido Tetsu. A forma como Chie é animada e o que ela faz ao longo da trama nos dá uma perfeita representação psicológica da personagem: independente, muitíssimo madura para a idade, com responsabilidades demais e diversão de menos. Há quase um caráter super-heroico diante da personagem e isso condiz, em parte, com a atuação dela nos mais diferentes espaços.
Todavia, mesmo o pai sendo a figura que concentra os problemas familiares, o diretor Isao Takahata não perdeu a oportunidade de fazê-lo protagonizar alguma cena de humor ou alguns momentos de demonstração de amor por Chie. A grande questão é que Tetsu não é alguém fácil de se gostar. Ele grita sem motivos e se comporta como se fosse filho de Chie e não pai dela. Essa forma infantilizada do personagem tem um lado positivo — dentro da comicidade — mas torna algumas de suas ações muito mais reprováveis, como o momento em que ele faz o chefe beber demais para incitar a briga entre dois gatos, a fim de s vingar de um deles. E por falar em gatos… falemos dos gatos.
Como eu indiquei no início do texto, a exposição dos felinos aqui é bem bizarra. A direção destaca de maneira até meio constrangedora os testículos dos gatos desde o início da obra e eu fiquei me perguntando qual era a intenção daquilo. Imagino que algum espectador mais dado a simbolismos possa fazer alguma leitura de significados ligados à força e virilidade como um espelho nesses animais, mas sinceramente, não vejo nada disso aqui. O bloco dos gatos parece inicialmente interessante, tem o caráter de fantasia que conhecemos bem dos animes, mas aos poucos ganha uma independência e um espaço no longa que chega ao cúmulo do absurdo quando o filho do falecido Antonio desenterra o testículo do pai e o coloca em cima de uma lápide para “assistir” à briga com o gato de Chie, que castrou Antonio e, segundo o pensamento dos roteiristas (machismo felino?), “tirou as forças” do animal.
O calor familiar reforçado pela trilha sonora ao término da obra cria uma atmosfera bonita, inclusive indicando uma certa mudança em Tetsu. Chie: A Pirralha é uma obra sobre os altos e baixos de uma família — com direito à reprodução de uma cena de O Filho de Godzilla — e sobre como as amizades e os braços estendidos de algumas pessoas ao nosso redor podem fazer toda a diferença nas fases difíceis, tanto para os que são ajudados quanto para aqueles que ajudam.
Chie: A Pirralha (Jarinko Chie) — Japão, 1981
Direção: Isao Takahata
Roteiro: Noboru Shiroyama, Isao Takahata (baseado nos quadrinhos de Etsushi Haruki)
Elenco: Chinatsu Nakayama, Norio Nishikawa, Kiyoshi Nishikawa, Yasushi Yokoyama, Ryûsuke Matsumoto, Utako Kyô, Keisuke Otori, Gannosuke Ashiya, Kyoko Mitsubayashi, Bunshi Katsura Vi, Yoshiko Ohta, Ichirô Nagai
Duração: 105 min.