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Crítica | Chico Bento – Verdade

Não é fácil aceitar uma nova realidade.

por Luiz Santiago
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Orlandeli, que fez um trabalho primoroso em Arvorada (2017), voltou a escrever e a desenhar uma HQ do Chico Bento, em 2021. Mais uma vez ele traz um assunto denso à discussão, algo natural da vida, mas que não aceitamos facilmente. Algo que acaba ganhando outra perspectiva, quando encarado por um garoto que vê o mundo de forma simples e, ao mesmo tempo, muito profunda. Um amigo de Seu Tonico, o pai do Chico, vem visitar o sítio. Seu Adamastor, como é chamado, quer tirar fotos do jardim de Dona Cotinha, para ter um número maior de modelos de flores para a sua produção de vasos ornamentais, com espécies feitas de pano, “que não morrem nunca“, como ele faz questão de frisar. O início da aventura estabelece certa animosidade entre Chico e Adamastor, porque o homem da cidade é cético e amargo, não acredita nas histórias da Vó Dita e no folclore da roça, e isso, claro, ofende o menino.

Por trás da carranca, do descrédito, da agressividade e negatividade de Adamastor, no entanto, está uma depressão em andamento. Um luto insuperado, que simplesmente o transformou em alguém com pensamentos obsessivos em relação à perda, à morte, à finitude. Ele vai de alguém que tinha sonhos muito bonitos, que pensava em seguir uma determinada vida no campo ao lado da amada Jaci, para alguém desgostoso de tudo, que tem os seus planos drasticamente modificados pelo “acaso”. Achei interessante o fato de o tema da morte ser trabalhado nessas duas aventuras de Orlandeli com o Chico, cada uma sob um ponto de vista diferente. No presente caso, ele usa o sítio como um local de catarse para Adamastor, que volta para a cidade com uma nova perspectiva de vida, depois de passar por experiências ao lado de um garoto que acredita em Saci, Iara, Caipora, Mula-Sem-Cabeça e Lobisomem, um imaginário “bobinho” que ele acaba não rejeitando mais, mesmo que seja apenas para manter viva a imaginação do Chico.

O autor brinca com a ideia de narração de histórias através das imagens, com desenhos sombreados que ressaltam a imaginação e indicam esse “outro mundo” que muitas pessoas de ambientes urbanos simplesmente descartam, em favor da explicação racional. Há também uma boa dose de nostalgia e tristeza quando o texto fala de modas de viola, do sertanejo raiz, da Folia de Reis, e indica que muitas dessas manifestações estão se tornando escassas, pouco conhecidas das novas gerações. É um pedaço da cultura de uma região do Brasil que antes atingia e movimentava um grande público, mas que hoje é revisada para fins puramente mercadológicos, engessados e corrompidos (como acontece com a música sertaneja, em sua versão “universitária” e variantes dessa) ou simplesmente está desaparecendo.

Existem verdades na vida que são aprendidas de forma inesperada e, algumas delas, ao lado de pessoas muito mais jovens, que acabam ensinando coisas que não imaginávamos ser possível aprender de alguém tão ingênuo. Nesta aventura, Orlandeli mostra como uma criança tão incrível como Chico Bento é capaz de fazer um homem traumatizado recobrar sua vontade de viver, refazer planos e seguir adiante, mesmo sentindo falta de alguém que perdeu. E essa vitória é conseguida através de uma terapia diferente. De um encontro imaginativo que quebra a resistência de Adamastor ao mesmo tempo que cria um laço dele com Chico, após uma noite correndo de seres folclóricos e perigosos da mata. O que é verdade, imaginação ou efeito do cansaço, aí, fica para cada um decidir. Mas o efeito de tudo isso é aquele “pouquinho de saúde e descanso na loucura” que surge quando uma centelha de amor, seja por qual meio, aparece em cena e tem a capacidade de colocar um trem descarrilado de uma vida no lugar.

Chico Bento – Verdade – Brasil, março de 2021
Graphic MSP #30

Roteiro: Orlandeli
Arte: Orlandeli
Cores: Orlandeli
Editora: Panini Comics, Graphic MSP, Mauricio de Souza Editora
Páginas: 98

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