Dividida em duas partes, uma no início e outra no final do volume, a primeira história dessa edição #77 da revista Chico Bento (Editora Abril, julho de 1985) é a principal e a melhor aventura da publicação, narrando uma saga onde o Diabo faz um plano terrível (a tal Operação Microinfernal do título, com a continuação chamada de A Batalha Final) para conseguir adquirir almas dos seres humanos. Exceto pelo finalzinho, sobre o qual comentarei bem mais adiante, tudo nessa história é absurdamente divertido, interessante e quase inacreditável que esteja presente em um gibi para crianças. Definitivamente a “MSP do Velho Testamento” não era brincadeira não. Os escritores pegavam pesado e sabiam unir, como o presente caso, um lado mais macabro e mais cínico de um enredo a algo que pode ressoar para qualquer leitor.
O início já traz a semente de uma grande história. A pessoa que escreveu o roteiro faz o Capetão dirigir-se ao leitor, quebrando a quarta parede e criando uma linha metalinguística que funciona muito bem, aumentando o impacto da tragédia que está por vir. As falas do Coisa Ruim também são escritas com o maior cuidado. Não estamos diante de um roteiro que anseia por fazer piada a cada sílaba e a única coisa que consegue é irritar o leitor. Nada disso. O Diabo tira sarro da doença do Chico Bento e diz claramente que quer infectar a humanidade inteira. É uma forma fácil de conseguir para a hordes infernais a quantidade de almas que ele não conseguiu através do dinheiro ou de muitas “outras tentações” que apresentou aos humanos. Leitores mais chatinhos podem ver no texto um encaminhamento moral dominante e negativo, mas percebam que essa linha não aparece como uma imposição do autor (ou autora) da trama, mas como um contraste àquilo que o Diabo quer conseguir. É um meio retórico para um personagem típico da mitologia cristã, portanto, tal encaminhamento é perfeitamente compreensível, não acham?
Vemos uma influência muito bem aproveitada de Viagem Fantástica (Richard Fleischer, 1966), que coloca o “Agente Meia Meia Meia” do Diabo no corpo do Chico através de uma “máquina de diminuir capetinhas“. É por isso que o nosso querido garoto da roça adoece de maneira inexplicável e o médico local não sabe o que fazer, chegando, ao final da trama, a desistir do tratamento. Até esse momento da desistência, que é quando os pais do Chico se unem, se abraçam e criam uma corrente de força que acaba acelerando os glóbulos brancos do menino para combaterem o invasor encapetado, o enredo é aplaudível. A arte, que também não sabemos de quem é, porque nessa época, as aventuras da MSP não eram creditadas a quem devia, é outro triunfo aqui. Os ângulos em que o Diabo está desenhado, os desenhos de uma página só mostrando o Chico doente e, nessa última que vocês podem ver mais abaixo, com a família reunida, são muito bonitas e comunicam muito bem conosco.
Só não classifico essa trama como uma obra-prima porque o final acelera muito o mecanismo de derrota do Diabo e porque o elemento de fé brota do nada e sai como o grande remédio da cura. Nas telas do Inferno, vemos os pais do Chico beijando o menino e abraçando-o. Não há a indicação de que estão rezando, mas o leitor pode assumir isso tranquilamente. O problema é que o autor considerou esse elemento subtendido, realizado em elipse, como o grande remédio para acelerar o sistema de defesa do doente. Isso é o que derruba um pouco a qualidade do texto para mim, de algo próximo de “obra-prima” para “ótimo“. Se ao menos fosse citado o amor e a vontade dos pais do menino num balão final ou num retângulo de narração, tudo estaria resolvido. Mas o autor ficou apenas com a fé. O que é aceitável e até esperado, dado o contexto e a família do personagem, que é bastante católica, como sabemos. Mas foi uma escolha que não funcionou bem, porque deu apenas um lado narrativo de algo que claramente tinha outra face.
A revista se completa com mais três histórias. O Imitador (3) mostra um talento escondido do Chico Bento, que vai imitando sons de animais e pessoas que são um perigo para o que alguns de seus colegas estão fazendo na roça. A virada dramática final, com todos batendo na onça, achando que era o Chico, é a linha cômica que pretende arrancar o riso do público, e meio que consegue, de fora bem tímida. A trama é boa em seu desenvolvimento, mas é válido destacar que ela não propõe muita coisa, então esse “bom” está alinhado a uma intenção narrativa muito simples, embora eficiente no que propõe.
O Último Dia de Férias (3,5) é uma daquelas histórias que todos nós entendemos. Ela traz uma contradição gostosa e tem um sabor nostálgico que também toca os leitores mais velhos. O título já deixa clara qual é a atmosfera reinante do drama, e durante esse “último dia“, o Chico está curtindo as suas regalias de alguém que não tem compromissos, tomando banho no rio, comendo goiabas, descansando na rede. E o tempo inteiro ele está com o pensamento na escola, sofrendo por antecipação, triste porque as férias acabaram e logo ele tem que arrumar a mochila para voltar a estudar. A ironia é que algo que ele não gosta acaba ocupando todo o seu dia, uma vez que não sai de seu pensamento, mesmo que por um motivo negativo. Mas no dia seguinte, a delícia de estar ao lado dos amigos muda rapidamente o humor do Chico, que admite que “aquilo não era tão ruim assim“. Quem nunca, né?
E por fim, a mais curta e a segunda melhor aventura dessa edição é a do Papa-Capim, intitulada As Árvores (4). Nela, o indígena da Tribo do Rio está confuso e insatisfeito com o desaparecimento de muitas árvores de seu território. A situação exposta nessa história é amplamente conhecida dos brasileiros há séculos. O desmatamento é uma ferramenta lucrativa para a indústria que se beneficia da matéria-prima e para os empresários/fazendeiros envolvidos com os maquinários e com as terras devastadas, direta ou indiretamente. Muitas vezes isso acontece em reservas indígenas, invadidas por madeireiros ou garimpeiros, tal como visto nos noticiários em 2023, por conta da tragédia humanitária dos Yanomami, em Roraima. O Papa-Capim aqui desconfia que as árvores estão sumindo por conta de um “Coisa Ruim”, e não demora muito tempo para que essa entidade realmente mostre seus chifres. É uma trama bem curtinha (apenas 3 páginas!), mas de uma profundidade enorme, com um humor ácido e socialmente tocante que não passa batido por ninguém.
Chico Bento #77: Operação Microinfernal (Brasil, 1985)
Roteiro: Não informado especificamente. Existem nomes de artistas dados no expediente genérico ao final da revista, sem dizer em qual história cada um deles trabalhou (deixo a página desse expediente nos comentários, ao final da postagem).
Arte: Não informado especificamente. Existem nomes de artistas dados no expediente genérico ao final da revista, sem dizer em qual história cada um deles trabalhou (deixo a página desse expediente nos comentários, ao final da postagem).
Editora: Abril
36 páginas