Chamas da Vingança, com direção de Tony Scott e atuação ilustre de Denzel Washington, é um filme de ação com fortes doses dramáticas, em cuja ação do enredo se desdobra por meio de uma vingança em razão do sequestro de uma criança pela qual o protagonista solitário e infeliz se apega enquanto serve como segurança oficial da menina. O argumento é muito bem desenvolvido, bem como o curso enredístico e as motivações fílmicas, mas tenho problemas críticos que envolvem a construção da imagem do México na película, o que me faz ver o filme com outros olhos. Dentro dos aspectos técnicos que compõem a obra, eles conseguem prender a atenção e evoca todas as características típicas de uma boa ação, com inúmeras peripécias surpreendentes, mas quando a semântica do longa-metragem aparece, isto é, quando a ideologia do enredo vem à tona, fica um gosto meio amargo.
Até os anos 2010 era recorrente nos filmes norte-americanos retratar a periferia do mundo – a América Latina sobretudo – com imagens fílmicas insalubres, amareladas, com cores quentes, como se quisessem ilustrar o caráter de subdesenvolvimento de países ainda em crescimento. Alejandro González Iñárritu na sua trilogia da morte (Amores Brutos, 21 Gramas, Babel) usa e abusa de cores insalubres para retratar o México. Em Chamas da Vingança, a situação é ainda pior por dois motivos: o primeiro deles é que ao fim descobre-se que o grande mandante que ordena os sequestros de famílias ricas estadundenses é um homem mexicano, e o segundo é que nos créditos finais o diretor cinicamente escreve: “Um abraço especial à Cidade do México”. Por essa razão, eu zeraria a nota do filme. Contudo, esperei um dia inteiro após ver o longa para poder escrever sobre ele e então resolvi deixar isso de lado em função da crítica do enredo, que merece alguns comentários.
Um grande aspecto do filme é a sua coesão, de tal modo que todas as motivações fílmicas são explicadas, e uma coisa leva a outra com a naturalidade que deve ser. Uma das coisas de que gosto muito em cinema e literatura é algo que se chama de “reconhecimento”, que é quando um personagem, por meio do reconhecimento de um símbolo que já lhe é familiar, muda o curso da ação do enredo para pontos inesperados. Aqui, o cineasta trabalha bem com essas cenas de reconhecimento, levando os personagens a identificarem símbolos ou signos capazes de mudar o rumo dramático. A cena do sequestro é um caro exemplo disso. John Creasy (Denzel Washington), ao treinar Lupi (Dakota Fanning) para uma competição, a acostuma com um barulho agudo, que significa que ela teria de partir em retirada ao ouvi-lo. Sabendo disso, num momento em que ela está prestes a ser sequestrada, Creasy atira para o alto e ela, já sabendo do sinal, o reconhece e foge. São elementos desta natureza que incrementam o enredo e abrilhantam o filme.
Ainda sobre o enredo, as reviravoltas são bem pensadas e não caem no lugar-comum. A escolha ousada em matar a protagonista é uma peripécia arriscada e o que conduz Creasy à vingança por terem-na matado. Contudo, é uma grata surpresa que tudo isso seja revertido ao fim do longa-metragem, quando já tínhamos acostumado com a ideia forjada pelo cineasta. Este é um filme de ação que se mistura com elementos marcantes do gênero dramático, concluindo complexidade e beleza ao percurso da trama. A história é encerrada de modo feliz por um lado, mas absolutamente melancólica e infeliz por outro.
O personagem de Denzel Washington é obscuro emocionalmente, frio na exata medida para transpassar infelicidade mas humano o bastante demonstrar afeto diante da única personagem capaz de fazê-lo sorrir no filme. Ele apenas esboça um sorriso duas vezes e nas duas é acompanhado da menina, que de algum modo o traz à vida. É, enfim, quando tudo parece voltar a fazer sentido para ele que acontece a ruptura brutal e ela sai de cena. Esta é uma grande atuação de D. Washington, que traduz em verdade tudo aquilo que lhe era exigido para o papel. Por meio do protagonista, temáticas violentas como solidão e desamparo são introduzidas de maneira bem assídua e as frases pronunciadas por ele, assim como suas expressões faciais, atingem em cheio quem assiste.
O elenco de apoio também conta com a presença inesperada de Gero Camilo e Charles Paraventi como figurantes, o que é uma surpresa – pessoas aleatórias em situações nada a ver. Tony Scott, que eu já havia elogiado por sempre fazer um arco dramático fechadinho em seus filmes, não foge à regra aqui e a coesão mostra-se enquanto caraterística positiva da trama. Violento mas humanizado, Man on Fire é uma releitura competente e emocionante do filme de 1987 (Élie Chouraqui), entregando uma peça única e com uma atuação de certo memorável de D. Washington e da mirim Dakota Fanning.
Chamas da Vingança (Man on Fire – EUA, 2004)
Direção: Tony Scott
Roteiro: Brian Helgeland (baseado no romance de nome homônimo de A. J. Quinnell)
Elenco: Denzel Washington, Dakota Fanning, Christopher Walken, Giancarlo Giannini, Radha Mitchell, Marc Anthony, Rachel Ticotin, Mickey Rourke.
Duração: 140 min.