Primeiro, a pampa. Em seguida, uma família. Por fim, Andriele. O próprio discurso do filme mostra que sua delimitação foi obra do acaso. O documentário de Elisa Pessoa apresenta ao espectador a figura de Andriele, uma jovem sonhadora que vive com sua família na pampa gaúcha, mais especificamente no município de Dom Pedrito. Ao longo dos noventa minutos de filme, acompanhamos a personagem principal por volta de cinco ou seis anos: desde sua adolescência até a idade adulta. Entre sonhos, paixões e desejos, vemos Andriele descobrir a vida independente e também, muitas vezes, esbarrar nos limites que a vida real lhe impunha. O que parecia ser um filme sobre uma pacata família e sua vida no campo, torna-se uma espécie de diário visual pelo qual conhecemos a garota.
A primeira imagem da pampa é linda. Bem tratada, com uma iluminação radiante, enquadramento perfeito e um senso estético ímpar. Mas o campo não comporta essa imagem. O que realmente nos dá um senso de pertencimento ao local são as gravações seguintes: gravadas por um celular, granuladas, com pouco cuidado no enquadramento e sem nenhuma estabilidade. É isso que a pampa nos entrega como verdade visual. Não são imagens de cinema. São imagens de Andriele. O acaso fez bem ao filme de Elisa. Ter descoberto essa potência intrínseca no retrato amador, cotidiano, de Andriele dá sobrevida ao documentário. Nos primeiros minutos, vemos mais daqueles planos lindos, agora enquadrando o pai e a mãe da protagonista. A mãe, mais desenvolta perante a câmera, ainda parece engessada; o pai é quieto, claramente incomodado com a câmera. Adiante no filme, quando a câmera é o celular de Andriele, tudo ocorre com mais naturalidade – a própria protagonista quando enfrentada pelas lentes do cinema não consegue se expressar como o faz com sua própria câmera amadora. Fosse o filme todo feito com as belas, porém inócuas, imagens cinematográficas, pouco se teria a falar sobre Céu Aberto.
Logo no princípio do filme, Andriele pede à diretora que o filme fale sobre o cotidiano, sobre a realidade. Relaciono o filme aqui citado com uma obra do cineasta chinês Bi Gan, Kaili Blues. Este, também começa imagens capazes de causar prazer estético em qualquer um: são imagens completamente subjetivas. Na metade do filme, uma imagem amadora surge e domina a tela até seu final: nela, em plano sequência, vemos a viagem de um homem pelo distrito de Kaili – imagens objetivas. Em Céu Aberto o movimento parece contrário. Os planos cinematográficos tentaram, de um jeito peculiar, captar a realidade como ela é. Já as gravações de Andriele são seu mundo: subjetividade pura; mostra ao espectador como ela se relaciona com a vida e tudo ao seu redor. Aquele distanciamento que vemos na família já não existe. Andriele capta aquilo que só ela poderia captar. O filme, além de estrelado por ela, é completamente seu. O talento da diretora aparece justamente em deixar o protagonismo ser inteiro da jovem que acompanhamos.
Entre imagens do cotidiano, vemos Andriele experimentar diversas facetas da vida de uma jovem-adulta: desde entregar currículo em lojas para até propor parcerias para lojas de maquiagem. Acompanhamos as imagens da menina desde a pampa até sua casa no centro da cidade de Dom Pedrito, momento em que a jovem admitiu estar experienciando a solidão pela primeira vez na vida. Em dado momento, Andriele passa a utilizar seus vídeos diários como plataforma utilizada para contar sua vida – aqui há, também, uma considerável diminuição das vistas amadoras do cotidiano. É, também, quando percebemos a protagonista mais distante de nós. As palavras começaram a soar programadas ou ensaiadas em suas auto-entrevistas. As falas mais genuínas de Andriele não estão ali: estão nas gravações do cotidiano, seja no campo ou na cidade. Já perto do fim do filme, os diários falados cansam, não apresentam mais a sinceridade construída ao longo de Céu Aberto.
Andriele comentou sobre vários sonhos seus. O primeiro, a zootecnia: como já trabalhava com animais com seu pai, pensou em rumar para essa área ou, talvez, para medicina veterinária. Anos depois, planejou entrar para o programa de Jovem Aprendiz, no qual entregaria currículos para lojas aleatórias em busca de uma oportunidade de emprego. Depois, descobriu uma fixação por maquiagem, tendo realizado trabalhos em si mesma e em outras mulheres – aqui foi o momento no qual a protagonista quase se profissionalizou. Tudo isso envolvia um detalhe: sair da pampa e ir para a cidade. Esse sempre foi o objetivo primordial da jovem. O tempo passou. E o tempo é imprevisível. Nos últimos depoimentos, Andriele já planeja um futuro sem muita assertividade; agora grávida e de volta ao campo com seu namorado, nada se apresenta com muita certeza em sua vida. Ela expressa o desejo de voltar a trabalhar, mas não diz onde ou quando. O foco é o presente: a construção de sua modesta casa no campo com seu companheiro. Os sonhos deixaram de existir. Aos poucos o tempo os triturou.
Ao final do filme a própria Andriele admite que não é possível prever o futuro ou fazer grandes planos para o depois. O que importa em sua vida é seu agora. O futuro fica para depois. E seja qual for, a protagonista parece convicta a aceitá-lo. Nietzsche já dizia isso. Mas as palavras que cabem ao final de Céu Aberto são de Mary Schmich: “não se preocupe com o futuro, ou se preocupe, se quiser; mas saiba que se preocupar é tão eficaz quanto tentar resolver uma equação de álgebra apenas mascando chiclete”.
Céu Aberto – Brasil, 2022
Direção: Elisa Pessoa
Roteiro: Elisa Pessoa
Elenco: Andriele Rodrigues Soares, Sandra Mara Gularte Rodrigues, Alfeu Vargas Soares
Duração: 94 min.