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Crítica | Cenas de Minha Vida, de Michael K. Williams (com Jon Sternfeld)

A autobiografia póstuma de Omar Little.

por Ritter Fan
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Como eu disse muitas vezes antes, as drogas não são o problema. As drogas são um sintoma do problema.
Williams, Michael K.

No dia 06 de setembro de 2021, aos 54 anos, Michael Kenneth Williams, provavelmente mais conhecido por seu inesquecível papel de Omar Devone Little, na espetacular série The Wire, foi achado morto em seu apartamento em Williamsburg, no Brooklyn, por seu sobrinho. A causa da morte foi overdose de drogas. A tragédia aconteceu algumas semanas antes de ele e Jon Sternfeld, seu biógrafo, enviarem a primeira versão do manuscrito da autobiografia que eles estavam escrevendo, para a editora. O livro, publicado postumamente menos de um ano depois graças aos esforços de Sternfeld, que completou o que faltava usando material retirado de entrevistas com o artista, acabou sendo, então, o último sinal de alerta de Michael K. Williams para sua comunidade e para todos aqueles que são viciados em drogas ou estão prestes a se tornarem viciados, como um último esforço seu para usar sua própria vida como exemplo e como um conto de advertência.

Cenas de Minha Vida (minha tradução direta para Scenes from My Life, já que o livro não havia sido publicado no Brasil até a data de lançamento da presente crítica) é uma obra difícil de ler. Não por sua complexidade ou hermetismo, pois o texto, ao contrário, é fluido e bom de acompanhar em termos de construção e narrativa em primeira pessoa, mas sim pela angustia que a história de vida de Williams, praticamente, de uma forma ou de outra, sempre envolto com as drogas que acabariam ceifando sua vida, causa no leitor. E afirmo isso como um homem branco que nunca teve drogas de qualquer natureza em sua vida, seja direta, ou indiretamente, ou seja, em uma posição de absoluto conforto e privilégio que Williams, com seu texto que evita vitimismo e apenas coloca no papel a realidade de sua vida e, claro, a de milhões de outras pessoas em situações semelhantes, despedaça completamente, tornando sua dor, sua tragédia, sua tristeza, mas também seu amor e sua redenção em um eficiente instrumento de choque de realidade.

A realidade americana, lógico, mas mesmo assim uma realidade que não deve ser radicalmente diferente da realidade em outros países, incluindo o Brasil, ainda que eu não tenha conhecimento de causa para afirmar isso categoricamente. E reparem: Williams, mesmo começando tardiamente na carreira de ator (seu primeiro trabalho foi uma ponta em Bullet, de 1996, quando ele já tinha 25 anos), era um ator, fazia parte da engrenagem de Hollywood e mostrou enorme potencial com o já citado papel de Omar Little que o levou a outros como o de Chalky White, em Boardwalk Empire; Freddy Knight, em The Night Of; Leonard Pine, em Hap and Leonard; e Montrose Freeman, em Lovecraft Country. Não que “fazer parte da engrenagem hollywood” seja algum tipo de blindagem – quantos casos não conhecemos de entrega às drogas nessa seara, não é mesmo? -, mas sim que ele pelo menos em tese tinha condições de evitar esse caminho, certamente muito mais do que alguém que sequer tem a chance de sair do próprio bairro em que nasceu.

Em sua autobiografia, MKW não faz muito uso de aplicações generosas de verniz como em muitas obras do gênero por aí. Muito ao contrário, ele vai direto na ferida, abordando no começo, em grande parte, seu relacionamento com sua própria mãe e o quanto a forma dela tratá-lo o ajudou, mas ao mesmo contribuiu para levá-lo às drogas. Ele fala de preconceito racial dentro de seu próprio seio familiar, já que sua pele era mais escuro que a de seu irmão mais velho, gerando, em suas palavras, uma preferência de sua mãe pelo primogênito pela razão direta de ela própria ter sofrido isso em relação à sua mãe (avó de Williams) e também pelo racismo sistêmico que de certa forma determina que seu irmão teria mais chances de se adaptar ao mundo ao seu redor. Por outro lado, sua mãe era uma matriarca protetora, uma verdadeira leoa no que se refere à sua prole, defendendo os filhos com todas as suas forças, o que também gerava uma espécie de “jaula” para o jovem MKW que tinha seu mundo limitado ao playground do conjunto habitacional que eles viviam no Brooklyn.

Sua entrega às drogas se dá nesse contexto e também no contexto de sua jornada de autodescoberta para além dos confins de seu condomínio por intermédio de uma grande amiga e mentora que o levou a conhecer Manhattan, mais precisamente o Village onde um mundo mais livre e liberal o esperava e onde ele pode descobrir de verdade seu amor pelas artes, especialmente pela dança, seu efetivo começo de carreira no entretenimento. É também dentro desse contexto que ele, que nunca antes havia se metido em brigas, que sempre foi considerado pequeno e franzino, ganhou sua icônica cicatriz que trespassa seu rosto quase que completamente, além de outra, no pescoço, que pouca gente conhece por ser bem mais fácil de esconder. A colagem de eventos marcantes na vida de MKW, ainda que ele evite em falar de sua sexualidade, uma escolha claramente proposital e perfeitamente aceitável, é ao mesmo tempo assustadora e fascinante. Assustadora pelo quanto ele realmente demorou a achar espaço para crescer, para se achar e para vagarosamente entrar na vida artística, e fascinante por sua perseverança, pela forma como ele, mesmo em retrospecto, percebe o quanto o fator sorte o ajudou a escapar de um caminho completamente pré-determinado para alguém como ele, um homem pobre (mas não miserável) e negro em uma das mais importantes cidades do mundo, caminho esse que levou embora diversos amigos e conhecidos em seus anos de formação.

Mais importante do que isso – e até mais importante do que seu mergulho nas drogas e suas idas e vindas desse abismo mortal ao longo de muitos anos – é sua franqueza em encarar sua própria ignorância. Temos que convir que encarar a ignorância não é exatamente algo raro, mas falar sobre esse processo é e, além disso, por vezes estamos tão enfronhados em um cantinho de mundo que sequer conseguimos detectar que não sabemos ou não percebemos algo para que sequer tenhamos a consciência de nossa ignorância. Em uma abordagem que carrega muita melancolia, mas também um senso de completude de dever, MKW assume sua ignorância sobre o mundo ao seu redor, sobre o que significa ser alguém como ele em um mundo fechado e esquecido pelo status quo, e regozija-se ao dizer que conseguiu ultrapassar essa barreira, distanciando-se para ver o todo e aproximando-se para lidar com o cotidiano de outras pessoas, especialmente jovens, como ele um dia foi. O mais claro exemplo disso foi seu primeiro encontro pessoal com Barack Obama, então ainda candidato à presidência, algo que se deu por ele ter vivido Omar Little e por Omar Little ser um dos personagens favoritos do futuro presidente dos EUA. Diz MKW que ele mal havia ouvido falar de Obama e não fazia a menor ideia de sua plataforma ou mesmo sequer o que poderia significar ao seu país e à sua raça ter um presidente afrodescendente. E vejam, MKW já tinha mais de 40 anos de idade quando isso aconteceu.

Cenas de Minha Vida oferece um panorama honesto e, principalmente, pungente de uma vida infelizmente curta demais de um ator que pode até ter tido poucas grandes oportunidades artísticas, mas que mesmo assim marcou sua época. A autobiografia póstuma fica como um presente àqueles que se veem em situações semelhantes às de MKW em seus vários momentos de vida, mas também àqueles que, como eu, procuram olhar de fora para dentro de um mundo alheio à sua realidade, mesmo que normalmente escolham ignorar essa existência às margens da sociedade. Uma obra difícil, sem dúvida, mas uma obra real, dura e necessária.

Cenas de Minha Vida (Scenes from My Life: A Memoir – EUA, 2022)
Autor: Michael K. Williams, com Jon Sternfeld
Editora original: Crown (The Crown Publishing Group)
Data original de publicação: 23 de agosto de 2022
Editora no Brasil: não publicado no Brasil na data de lançamento da presente crítica
Páginas: 288

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