Embora os ceddo que vemos neste filme não sejam uma “etnia fictícia”, como muitos articulistas apontam, é fácil entender o por quê dessa conclusão. O escritor e diretor Ousmane Sembène cria aqui uma plataforma de denúncia e também de reflexão sobre um grupo de indivíduos marginalizados que resistem à opressão, ao domínio de outro povo (significado amplo do termo “ceddo“, em língua pulaar, às vezes também usado como sinônimo de “intrusos” ou “não-muçulmanos“) e a dinâmica social, política, religiosa e cultural que o filme retrata nos traz à memória uma porção de ações semelhantes contra diversas etnias subjugadas ao redor do mundo.
Como é frequente no cinema de Sembène, duas leituras imediatas podem ser feitas aqui, cada uma delas dando espaço para outras possibilidades interpretativas ou mesmo condições críticas adicionais, indo desde o uso da força para conversão de um povo a uma fé — e, a partir daí, alterando a sua dinâmica político-social (questão sensível a inúmeros povos africanos — lembrou-me o final do clássico nigeriano O Mundo se Despedaça, de Chinua Achebe) — até discussões sobre a inclusão da mulher em papéis de liderança revolucionária e/ou representação da mulher em papéis relevantes, algo que o próprio diretor reforçou no decorrer de sua filmografia.
Como dito por Sembène em entrevista a Ulrich Gregor, no Festival de Cannes, em maio de 1977 (onde o filme estreou), não existe um “tempo histórico preciso” em Ceddo. Historicamente falando, porém, é lícito localizarmos o enredo no final do século XIX, mas com uma informação importante em mente: esse tipo de conversão pela força e o uso da religião como arma política e também de reescrita da identidade de um povo é algo historicamente atemporal, acontecendo no passado e também em nossos dias. E é nesta seara que o diretor ergue o seu drama, inicialmente causando estranhamento pela teatralidade da condução dramatúrgica dos atores. Entretanto, o público rapidamente entende essa abordagem e vê transformar-se essa atitude dos personagens à medida que o Islã vai se fortalecendo naquela região e que os ceddo vão sendo dominados e forçosamente convertidos.
O ato final da obra, porém, é o que melhor agrupa tudo aquilo que foi construído no filme. A discussão sobre a identidade cultural ganha outros tons e tem na cena de “batismo e nomeação” uma das mais tristes da obra, ao lado das cenas de violência amparadas pelo representante da nova religião. Em Ceddo, a tradição cultural e política é rapidamente abocanhada por uma versão extremista do Islã, com direito a uma jihad contra os que recusavam a nova fé e com um plano envolvendo tomada do poder e criação de novas leis com base nessa religião.
O revés que fecha o filme parece carecer de uma reação mais enérgica dos dominadores — a julgar pela forma como o diretor filmou os momentos de violência anteriores — mas termina sendo um dos pontos mais poderosos da obra, que apesar da virada de conjuntura, deixa em suspenso o que aquele momento representou para aquele povo. Uma mudança inesperada e encabeçada por alguém que sempre foi um prêmio tradicional para diversos homens e que teve pouquíssimas falas no filme. Um recado muito bem dado por Sembène no momento decisivo da obra.
Ceddo — Senegal, França, 1977
Direção: Ousmane Sembène
Roteiro: Ousmane Sembène
Elenco: Tabata Ndiaye, Alioune Fall, Moustapha Yade, Matoura Dia, Ismaila Diagne, Ousmane Camara, Nar Modou, Makhouredia Gueye, Mamadou Dioumé, Omar Gueye, Mamadou Sy, Mody Gueye, Samba Touré, Serigne N’Diaye, Pierre Orma
Duração: 112 min.