Depois de quatro temporadas de Castlevania no Netflix que, se espremermos, não sai uma mísera gota de sangue tamanha a enrolação sem rumo que foi aquilo, finalmente a famosa franquia de games da Konami iniciada em 1986 ganha uma adaptação que faz jus ao seu nome. Castlevania: Noturno, que tecnicamente é uma “continuação” da série anterior, mas que se passa algo como 300 anos depois, durante a Revolução Francesa, com personagens e situações completamente diferentes, repete a dose generosa de beleza exuberante que mantém a uniformidade e homogeneidade do universo para o serviço de streaming, mas acrescenta uma história sólida, personagens bem construídos (ou quase, mas eu chego lá) e uma progressão narrativa que evita tanto quanto pode o insuportável didatismo incompreensivelmente idiotizante que manchou a obra originalmente escrita por Warren Ellis.
A premissa, em linhas gerais, não é muito diferente do que vimos antes, com um jovem Richter Belmont (Edward Bluemel), anos depois do trauma que foi testemunhar o assassinato de sua mãe pelo vampiro asteca Olrox (Zahn McClarnon) durante a Revolução Americana e que lhe custa seus poderes mágicos, luta com seu chicote e suas adagas na França nos primórdios da Revolução Francesa contra vampiros ao lado da também jovem maga Maria Renard (Pixie Davies), filha da Oradora Tera (Nastassja Kinski) e acaba se deparando com um trama de dominação mundial vampiresca protagonizada pela Condessa Erzsebet Báthory (Franka Potente), uma autoproclamada vampira messias que diz ter poderes divinos. Se a trama em si não tem nada de realmente especial, a forma como ela é executada é muito competente, ainda que eu pessoalmente tenha problemas com as (des)animações nas sequências que não são de luta e pancadaria, algo que está, diria, no DNA do estilo da animação que emula o japonês.
O ponto mais forte do conjunto desta temporada inaugural é que há uma considerável fluidez nas escolhas narrativas, especialmente na maneira como as revoluções antimonárquicas que marcaram o século XVIII são usadas como sinais de algo maior e mais perigoso para a humanidade e como todo o lado vampiresco é conectado com a classe dominante e opressora, talvez com exceção do sempre mais complexo e interessante Olrox. Claro que há um considerável didatismo embutido nessa escolha, ligando a vilania às classes mais altas, mas o bom é que isso está justamente embutido e não explicado em longos diálogos redundantes como aconteceu na primeira série da franquia. Somando-se a isso e usando novamente Olrox como exemplo, os roteiros conseguem criar personagens realmente cativantes, mesmo no caso da supervilã unidimensional Báthory e sua minion número 1 – e também unidimensional – Drolta Tzuentes (Elarica Johnson).
Ainda falando sobre os personagens, talvez o destaque maior vá mesmo para duas duplas significativas, uma delas tornando-se uma trinca mais para a frente. A primeira e melhor dupla é a formada pela ex-escravizada do Caribe Annette (Thuso Mbedu), que é uma poderosa maga manipuladora de metal e terra a partir da evocação de orixás e pelo cantor de ópera afrodescendente (que escapou da escravidão justamente por ser cantor) Edouard (Sydney James Harcourt), seu parceiro na luta contra a opressão simbolizada pelos vampiros. Fugindo de selos evidentes, Annette e Edouard não são nem amantes, nem irmãos, mas sim realmente grandes amigos que se juntaram na luta contra o mal pelas circunstâncias do destino e que, na série, procuram Belmont justamente para lidar contra a ameaça maior da vampira messias, com os eventos que seguem separando-os tragicamente, mas levando a desenvolvimentos que muito interessantes para ambos. A outra dupla bem trabalhada é a de mãe e filha (com um pai evidente, mas que não vou revelar quem é aqui para não dar spoiler) que, se no começo parece mais básica, não demora a apresentar camadas narrativas que se amarram muito fortemente ao passado de Tera e que efetivamente impulsionam a história.
Por incrível que pareça, porém, quem não funciona de jeito algum é justamente aquele que, em tese, deveria ser o personagem mais importante. Richter Belmont é um gigantesco bebê chorão e resmungão que não tem um desenvolvimento decente sequer ao longo de toda a temporada. Ah, mas ele tem um trauma de infância, alguns dirão. Ah, mas ele supera esse trauma mais para a frente na temporada, outros dirão. Sim, verdade e verdade, mas esses eventos são trabalhados da maneira mais clichê possível e clichê do tipo ruim, em que o grande herói salvador chega a amarrar uma faixa na cabeça à la John Rambo para deixar evidente que, agora, ele mudou. Confesso, aliás, que ri muito nessa sequência e não foi uma risada de felicidade ou humor, mas sim de completo desgosto pelo que vi. Sendo mais chato ainda, com exceção do preâmbulo em que vemos Julia Belmont (Sophie Skelton) lutar contra Olrox, não consegui gostar de absolutamente nada envolvendo o tão aclamado Clã Belmont. Se alguém se desse ao trabalho de retirar digitalmente todos os Belmonts e menções aos Belmonts da série, o resultado final seria exatamente o mesmo ou, na verdade, melhor, pois seria mais enxuto e sem personagens expletivos.
Falando em resultado final, a temporada compreensivelmente acaba aberta e em um gigantesco cliffhanger, com muita coisa ainda a potencialmente acontecer. Isso faz parte do jogo, claro, mas, muito sinceramente, a chegada de determinado personagem importante na base do deus ex machina ao final, somente para ele ter uma entrada triunfal, foi um artifício cansado e completamente desnecessário do roteiro, que poderia ter feito a mesma coisa, só que de maneira muito mais lógica e orgânica e não na base do estalar de dedos (não que a aparição seja uma surpresa, vejam bem). Foi um final feito para fazer fãs suspirarem, mas que, se formos realmente olhar clinicamente em termos narrativos, perceberemos que não agregou nada à história, muito ao contrário até, pois detraiu de tudo o que vinha sendo construído tão bem.
No entanto, mesmo com seus problemas, Castlevania: Noturno faz tudo aquilo que a série predecessora não conseguiu fazer e entrega um enredo cativante com personagens genuinamente interessantes (e eu nem falei do ótimo Mizrak, o guerreiro braço direito do abade, vivido por Aaron Neil!) que dão estofo ao visual costumeiramente deslumbrante da série. Fica a torcida para que as próximas temporadas sigam esse mesmo caminho, só talvez fazendo com que Richter Belmont seja mais do que um sujeito qualquer que chicoteia vampiros (e, por favor, sem a faixa na cabeça…).
Castlevania: Noturno – 1ª Temporada (Castlevania: Nocturne – EUA, 28 de setembro de 2023)
Desenvolvimento: Clive Bradley
Direção: Sam Deats, Adam Deats, Saren Stone, Tam Lu
Roteiro: Clive Bradley, Zodwa Nyoni, Temi Oh, Testament
Elenco: Edward Bluemel, Pixie Davies, Thuso Mbedu, Nastassja Kinski, Sydney James Harcourt, Richard Dormer, Aaron Neil, Zahn McClarnon, Franka Potente, Elarica Johnson, Sophie Skelton, Iain Glen, James Callis
Duração: 214 min. (oito episódios)