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Crítica | Castanha do Pará

A história de uma criança "perdida".

por Luiz Santiago
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Castanha do Pará é a estreia de Gidalti Jr. nos quadrinhos. A obra surgiu como uma produção independente, possibilitada por uma campanha de financiamento coletivo, realizada no ano de 2016. Em suas páginas, acompanhamos a história de Castanha, um ‘moleque-urubu’ que vive vagando pelas bandas do Mercado Ver-o-Peso em Belém do Pará, e a quem seguimos nesta crônica crua que reflete a realidade de muitas crianças, adolescentes e jovens vagando pelas ruas de todo o Brasil, pelos mais diversos motivos pessoais e/ou familiares. No ano seguinte à sua publicação original, Castanha do Pará venceu a disputa da recém-criada categoria “Histórias em Quadrinhos” do Prêmio Jabuti e, em 16 de abril de 2018, protagonizou um episódio de censura que foi amplamente comunicado pela imprensa.

O episódio aconteceu em um shopping da capital paraense, onde a capa do quadrinho, que exibe o moleque-urubu escapando de um policial que o persegue com um cassetete, estava exposta, junto de outras obras de Gidalti Jr.. Um policial militar que viu a exposição se ofendeu com a imagem e fez uma postagem de indignação na internet, que foi replicada e comentada por muitos de seus pares, gerando forte comoção. Através de uma nota, a Polícia Militar do Pará comunicou à administração do Parque Shopping a insatisfação da tropa, e essa pressão básico escalou para a censura da arte, que foi retirada da exposição sem que o artista soubesse. Mascarando a censura, o caso foi vendido para a imprensa como “um acordo entre a administração do shopping e a curadoria da exposição“, que substituiu a obra censurada pela polícia por outra arte de Gidalti. A questão que fica é esta: o que existe de tão verdadeiro ou de tão absurdo nessa imagem que ofendeu tão profunda e irremediavelmente a esses policiais militares?

A resposta para esta pergunta vem como um soco através da história que este professor mineiro que passou parte de sua vida em Belém escreveu (baseado no conto de Luizan Pinheiro) e desenhou aqui. Em sua estrutura, esta é uma trama de narrativa complexa, que exige atenção do leitor para acompanhar o desenvolvimento muito bem amarrado e criativo do enredo. Cenas do passado e do presente se emaranham a cenas de imaginação do menino vagante e a um certo evento em continuidade, que é a agulha que costura esses blocos dramáticos: o depoimento informal da dona de casa Iracema para o Capitão Peixoto. É um andamento que mescla todos os acontecimentos da HQ e que vai mudando o ponto de vista da ação, tornando a crônica do garoto Castanha um dinâmico passeio por uma parte da cidade de Belém e também uma triste história que se torna ainda mais triste porque sabemos repetir-se aos milhares em outras capitais do Brasil: homens abusivos e alcoólatras que espancam mulheres e crianças; assassinato e famílias disfuncionais que simplesmente perdem o controle sobre os filhos.

Castanha gosta de futebol — aliás, esse esporte tem um papel muito importante do meio para o final da narrativa –, conhece bem a cidade e passa o dia fazendo aquilo que, pelo senso comum, entendemos que os meninos de rua fazem. De palavrões a modos violentos, furto para comer, fugas e provocações arriscadas e mal educadas a diversos adultos, Castanha segue de ponto a ponto da cidade encontrando-se com indivíduos que o tratam de maneiras diferentes e que parecem esperar alguma coisa dele: que os obedeçam e que não atrapalhe suas vidas. Castanha é o típico estorvo social. Sem ter tido uma verdadeira educação ou base familiar e por conviver muito tempo com a violência doméstica, sua maneira de reagir ao mundo é através do ódio e da violência. E mesmo assim, percebemos que os sonhos e as brincadeiras de criança ainda estão dentro dele, conseguindo vir à tona em uma das cenas mais bonitas e ao mesmo tempo mais tristes de todo o quadrinho, que é o momento onde o vemos brincar na chuva.

A (semi?) fábula que é Castanha do Pará mostra-se uma realista e terrível fotografia social e uma reflexão sobre o abandono e sobre a perdição de uma vida. Uma caminhada pelo centro de qualquer grande cidade nos mostrará algumas dezenas de meninos iguais a Castanha: famintos, cometendo pequenos crimes, arrumando brigas, entrando no mundo das drogas, se ferindo e muitas vezes também ferindo outras pessoas. E a narrativa de Gidalti Jr. torna isso ainda mais próximo de nós, pelo vocabulário que ele utiliza (com gírias, expressões e flexões típicas de Belém nos anos 1990, que é quando a história se passa), da mulher que conta ao policial os perrengues da família de Castanha — nota aqui para a fina ironia do autor em relação à linha de discurso dessa mulher sobre o próprio filho — e que traça o perfil desse menino “perdido” que o leitor tem a oportunidade de acompanhar por um outro ponto de vista, para além da visão viciada, preconceituosa e às vezes maldosa da vizinha “que só quer fazer o bem“.

Uma história que mostra o quão permanente é a miséria social, familiar, emocional e psicológica que assola crianças e adultos em todos os lugares, tornando a casa um lugar impossível de se viver, abrindo as portas para uma fuga que criará muitos outros problemas. Eis aí algo necessário que a horda supostamente preocupada em “salvar as crianças do nosso país” deveria pensar e procurar lutar para que fosse progressivamente consertado. Pânico moral não salva ninguém. E enquanto os adeptos dessa prática esbravejam aos moinhos de vento contra os seus próprios delírios, mais alguns Castanhas morrem pelo Brasil a fora, vítimas de uma estrutura e de uma condição social e cultural que parecem resistir às mudanças do tempo e continuam colocando crianças e adolescentes em um caminho que, para muitos, infelizmente, acaba sendo sem volta.

Sabe que seria até melhor se esse menino sumisse? Tô lhe falando! Sabes por quê? Se uma coisa só traz problema e faz os outros sofrerem… é melhor que ela não exista!

Castanha do Pará (Brasil, dezembro de 2016)
Primeira publicação:
Independente (campanha no Catarse, 2016)
Segunda publicação: Sesi-SP Editora, 2018
Roteiro: Gidalti Jr. (baseado no conto de Luizan Pinheiro)
Arte: Gidalti Jr.
Capa: Stêvz (sobre arte de Gidalti Jr.)
80 páginas

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