Home LiteraturaAcadêmico/Jornalístico Crítica | Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre

Crítica | Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre

Uma profunda análise da formação do Brasil, mesmo que datada e com pontos de reflexão reavaliados na contemporaneidade.

por Leonardo Campos
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Um clássico obrigatório para compreensão do Brasil contemporâneo. Para começarmos, vamos voltar no tempo e relembrar a história narrada pelos livros didáticos enquanto éramos estudantes: os portugueses, na figura de Pedro Álvares Cabral, descobriram o Brasil. Na verdade, colonizaram, saquearam o quanto puderam e escravizaram indígenas e africanos, estes últimos, vitimados pela diáspora sangrenta de um período vergonhoso da história mundial. Essa descoberta, na verdade, foi o “achamento”, descrito em detalhes no famoso documento, hoje material didático para as aulas de literatura: A Carta de Pero Vaz de Caminha. Ao longo de séculos de desbravamentos, os colonizadores implantaram os seus projetos econômicos, exterminaram o Pau-Brasil, forçaram os indígenas ao processo de conversão cristã, dentre outras situações envolvendo uma administração pouco coesa, como as capitanias hereditárias, os ciclos do açúcar, do ouro e dos minérios, numa trajetória que confluiu na conhecida miscigenação que define a base do povo brasileiro. Gilberto Freyre, um marco dos estudos sociológicos brasileiros, escreveu sobre isso, no polêmico livro Casa-Grande e Senzala, importante para o nosso entendimento sobre o desenvolvimento do Brasil enquanto nação miscigenada, no entanto, uma publicação que não deve ter as críticas necessárias deixadas de lado.

Tese do sociológico que ainda reverbera muito nos debates atuais sobre questões raciais, Casa-Grande e Senzala foi publicado pela primeira vez em 1933, tornando-se uma leitura fundamental para aqueles se interessam por entender melhor os desdobramentos históricos na formação da nação brasileira. Datado, haja vista muitas de suas ideias refutadas por estudiosos mais contemporâneos, inclusive, com lugares de fala mais adequados, o texto de Gilberto Freyre é de uma eloquência incessante. Mesmo com os seus problemas teóricos, os pormenores de cada tópico, o aprofundamento de sua pesquisa e a maneira como descreve as coisas permite não apenas o acesso de acadêmicos ao tecido de sua escrita, mas também para qualquer pessoa que tenha um hábito de leitura básico. É empolgante e apesar do volume extenso de páginas, se apresenta como um conteúdo que flui, sem a perspectiva enfadonha de outros acadêmicos.

Desenvolvido em dois eixos centrais, Casa-Grande e Senzala traz uma parte sobre a colonização pautada na monocultura latifundiária e o sistema escravocrata e, na outra, reflete o processo de separação entre os habitantes da “casa grande” e os indivíduos da “senzala”. A concentração territorial de uma colônia que não se preocupou com a devida distribuição de terras para exploração, a dificuldade em conseguir engajar no processo de conversão dos indígenas em funções de trabalho repetitivas, algo que culminou na diáspora africana para servir de mão de obra nos latifúndios, bem como a relação dos portugueses com a recepção e mixagem com as culturas aqui estabelecidas estão entre as análises de um dos eixos do livro. Crenças, comportamentos, vestimentas e outros traços culturais são o foco da reflexão do autor ao versar sobre os resultados das interações entre povos distintos, o que gerou os “brasileiros”.

Sobre o outro eixo basilar de Casa-Grande e Senzala, Gilberto Freyre descreve como o Brasil teve o seu desenvolvimento forjado pelo poder político, social e econômico no ambiente da Casa-Grande, enquanto os escravizados viviam nas senzalas, desprovidos de qualquer instância daquilo que hoje chamamos de Direitos Humanos. É uma análise profunda, de toda uma estrutura que envolve religião, meios de transporte, produção, vida sexual e relações familiares. Complexo, o povo brasileiro é apresentado neste livro como fruto de uma formação complexa, num sistema debatido lá em 1933, mas com desdobramentos na atualidade. A perversidade do racismo, estruturado em nossa sociedade e necessário para discussão dentro de reflexões mais abrangentes, não individuais, como ocorre erroneamente, com frequência, é romantizada pelo autor que recebeu críticas ainda em vida e as respondeu com muita tranquilidade. Numa perspectiva mais atual, a publicação pode ser considerada como um clássico importantíssimo para a nossa compreensão sobre as bases do Brasil, mas muitas das suas ideias, em especial, o mito da democracia racial, tema efervescente na contemporaneidade, nos demonstra que as ideias de Gilberto Freyre precisam sim ser conhecidas, mas debatidas, reavaliadas e relativizadas. Aquele esquema de leitura com senso crítico, compreendendo contextos.

Casa-Grande & Senzala (Brasil, 1933)
Autoria: Gilberto Freyre
Editora: Global
Páginas: 728

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