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Crítica | Casa de Pensão, de Aluísio de Azevedo

Romance naturalista inspirado no famoso caso criminal chamado Questão Capistrano.

por Leonardo Campos
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Rio de Janeiro. 1976. Uma mulher observa que a sua casa extensa pode ser transformada. Gerar um dinheiro adicional, haja vista a chance de ceder alguns quartos para alugar, como uma pensão. Ela mora com o seu filho, Antônio Alexandre Pereira e Julia. Convencida pelo rapaz, aluga um dos espaços para Antônio João Capistrano da Cunha, colega de estudos de seu filho. Nas idas e vindas do cotidiano, o inquilino é acusado de ter violentado sexualmente a jovem, causando desconforto no seio familiar. Desinteressado nas cobranças da matriarca por honrar a situação, o rapaz continua a sua vida sem se importar com o acontecimento. Levado a julgamento, Capistrano é solto. Ovacionado pelos colegas e por parte da população, é levado para uma comemoração. Num ato de fúria, o irmão da moça, sentindo-se traído e disposto a vingar-se, desfere cinco tiros e o aniquila numa rua deserta, após a saída do badalado evento posterior ao processo de absolvição. Uma grande comoção toma conta da cidade. Luto oficial de sete dias é decretado, dois dias de aulas suspensas, num enterro que se tornou um grandioso evento. A situação de julgamento se repete, agora com o autor da vingança. Absolvido após descrever as motivações, também é louvado e recebe honrarias por ter agido de maneira a manter a integridade do nome de sua família. Eis a curiosa Questão Capistrano, transformada em enredo literário pelo competente crivo de um dos maiores escritores brasileiros do século XIX.

Representante do período de nossa história literária conhecida por Naturalismo, o escritor Aluísio de Azevedo traçou descrições deterministas de nichos caricaturais cariocas que expunham a coletividade nos romances O Mulato e O Cortiço, duas de suas obras mais conhecidas, sendo Casa de Pensão a obra do meio, publicação que demonstra a transição na maturidade da escrita entre os dois clássicos costumeiramente presentes em exames seletivos e parte integrante da trajetória escolar na etapa de nossas vidas onde cursamos o Ensino Médio. Narrado em 3ª pessoa, o romance em questão traz, ao longo de seus 22 capítulos, uma história que se inspira neste crime bastante comentado, ocorrido em 1876, conhecido e já mencionado como Questão Capistrano. Em sua versão ficcional, nomes são trocados e elementos literários naturalistas são inseridos para engrossar o caldo do enredo que flerta com os temas corriqueiros da produção daquele período, isto é, adultério, os males da hereditariedade, sexualidade exacerbada dos personagens, relações de favor, traições, austeridade no bojo familiar, determinismo que evidencia as questões genéticas e a relação do ser humano com o ambiente em que vive, dentre outros tópicos característicos que se distanciou das idealizações e dos arroubos românticos.

Por meio de descrições minuciosas, algo que culmina em pouca ação e mais passagens de linguagem detalhada, Aluísio de Azevedo analisa apuradamente os comportamentos humanos da sociedade, numa observação interessante do espaço urbano do Rio de Janeiro naquele ponto do século XIX, já bastante transformado e prestes a se modernizar ainda mais com as constantes inovações tecnológicas que demarcaram o período. Publicado em 1884, Casa de Pensão retrata a travessia de um protagonista que tinha tudo para dar certo na vida, mas infelizmente se tornou vítima de infortúnios que vão das relações familiares desequilibradas ao processo de influência do meio que passou a viver quando se mudou do território maranhense para estudar Medicina numa universidade carioca, na época, a Corte. Amâncio, jovem descrito como oriundo de família rica, se apresenta no romance como preguiçoso, mulherengo, numa existência deslumbrada e focada na badalação. Logo em sua chegada, ele se hospeda na casa de amigos dos seus pais, um lugar com códigos mais rígidos, culminando na sua saída para a pensão onde os acontecimentos tenebrosos terminarão de maneira indesejada para o personagem.

Em seu caminho, o rapaz encontrará Luís Campos, o patriarca da casa onde se hospeda inicialmente, homem que é amigo de seu pai. Casado com Hortênsia, uma mulher aparentemente infeliz no casamento, este receptor jamais imaginará que o jovem terá um tórrido caso com a sua esposa. Paiva Rocha, colega que lhe apresenta a vida boêmia, é o catalisador das mudanças de Amâncio, pois as suas constantes saídas para festas e prostíbulos acabam criando um clima de desagrado na casa de Campos, levando o personagem a se mudar para a pensão que intitula o romance, comandada por João Coqueiro, um provinciano que estuda na mesma faculdade que o protagonista e logo se aproxima, interessado no que o rapaz tem para lhe oferecer financeiramente. Não demora, a irmã de Coqueiro entra na história, Amélia, jovem decidida a seduzir Amâncio para a retirada de dinheiro, quantias que beneficiariam a ela e ao irmão esperto e desonesto. Moldado, como já mencionado, o rapaz aproveita bastante a atmosfera vulgar e badalada do local, um antro de perdição para os olhares tradicionais.

Ao longo das 145 páginas de Casa de Pensão, o escritor naturalista reforça a construção de Amâncio se baseando não apenas na moldagem do tempo presente, mas fincado nas ressonâncias de sua criação. Descrito como abobalhado, o jovem era o típico garoto que apanhava na escola, além de passar por privações sentimentais em casa, ao menos pela parte de seu pai, um homem austero, frio, sem dosagem alguma de emoções paternais para o filho. Apesar da presença de Ângela, a sua mãe excessivamente sentimental, o ambiente familiar não trazia boa sustentação para Amâncio. Ele contraiu sífilis de sua ama-de-leite, dentre outros perrengues que de acordo com a cartilha naturalista foram definidores para formação de seu caráter. A sua partida é bastante sentida por sua mãe, mas para o pai, era uma estratégia de reformar o jovem nada proativo, uma chance de transforma-lo em homem evoluído. O comecinho de sua nova jornada até parece que vai ser uma viagem em trilhos seguros, mas não demora muito para a trajetória de Amâncio descarrilhar: bebidas, mulheres e festas. E, com isso, o corpo aberto para as traições e manobras que viriam adiante, modificadoras de seu destino.

Em seu cotidiano com prostitutas, corruptos e baderneiros, Amâncio goza dos privilégios de uma vida desregrada, até o dia em que recebe a notícia de falecimento de seu pai. A sua mãe deseja que o jovem se desloque para sua cidade natal, tendo em vista cuidar das burocracias. Ele se organiza para a ida, mas Amélia, já envolvida, só permite o seu deslocamento depois do casamento devidamente registrado, afinal, ela e o irmão não queriam perder o projeto de extorsão que tinham organizado. Acuado, o rapaz não deseja levar o caso com seriedade e planeja uma fuga, descoberta por João Coqueiro, sedento pelo dinheiro, figura que arruma duas testemunhas falsas e um advogado para acusar o suposto amigo de sedução, basicamente, é como se Amâncio tivesse assediado Amélia e fugido de sua responsabilidade. Dois oficiais o prendem durante a sua viagem. Luís Campos até se posiciona para ajudar, mas depois de receber uma das cartas trocadas entre o jovem e sua esposa, declina do objetivo. Preso, Amâncio é absolvido três meses depois, após um julgamento que o transforma em herói, sendo ovacionado na saída e recebido com festejos por seus colegas de faculdade. Da prisão, ela segue direto para comemoração num sofisticado hotel do Rio de Janeiro. João, furioso, planeja a vingança.

Ele espera Amâncio ficar numa situação vulnerável para atacar. Antes, adentra por uma crise que quase o leva ao suicídio, mas num lapso, abandona a ideia para assassinar o rapaz com diversos tiros. Sem chance de se defender, a única palavra do protagonista ceifado é “mamãe”, antes de morrer em decorrência dos tiros no peito. Motivado pelo fato de ter se transformado em alvo de pilhérias na cidade, João Coqueiro comete o seu crime em nome da própria honra, arruinada. Após aguardar contato do filho, sem sucesso, Ângela segue para a Corte e descobre da pior maneira possível que o seu garoto faleceu tragicamente. Com traços românticos em seu encerramento, Casa de Pensão capricha nas passagens minuciosas até mesmo em seu desfecho mais agitado que os demais capítulos do romance, numa abordagem de um caso real que sacudiu as estruturas da opinião pública carioca na época, uma reflexão sobre honra feminina e assuntos correlatos, com reações de todo tipo, favoráveis e contrárias ao desfecho criminoso.

O romance começou a ser publicado em 1883, como folhetim, no jornal Folha Nova, ganhando formato de livro posteriormente. Conectado com o estilo de sua época, Casa de Pensão traz descrições que podem se tornar cansativas para o leitor contemporâneo, pedindo um olhar diacrônico para que a viagem literária se faça de maneira mais assertiva. Ao final do trajeto, nós leitores podemos refletir sobre como a racionalidade escrava da emoção se desenvolve como um dos principais tópicos temáticos desta interessante história de relações tórridas, não apenas sentimentais e sexuais, mas também no bojo do contato humano efervescente, de pessoas tomadas por ambições e levadas ao crime para fazer valer os seus respectivos pontos de vista. Questões raciais, preconceitos, injustiças de ordem social e a miséria de uma parte da sociedade carioca, problemas deste período que ainda se desdobram em pleno século XXI, integram o enredo de Casa de Pensão, um clássico da nossa literatura que deve ser conhecido e desvendado pela juventude leitora em processo de formação, mas também pelos demais leitores que já passaram da fase estudantil e se interessam por uma leitura instigante, com uma trama bastante conectada com a nossa realidade. Curioso observar que o enredo ainda não rendeu um bom filme, série ou peça teatral mais recente. É um material valioso para tais suportes.

Casa de Pensão (Brasil, 1884)
Autor: Aluísio de Azevedo
Editora: Ática – Série Princípios
Páginas: 145

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