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Crítica | Carrossel da Esperança (1949)

Uma celebração da imperfeição do trabalhador e suas distrações humanas. 

por Michel Gutwilen
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Acima de tudo, Carrossel da Esperança, longa de estreia de Jacques Tati, é uma celebração humanista de um velho mundo e costumes que estão ameaçados. Neste sentido, há ecos de Tempos Modernos, obra-prima dos anos 20, mas com a diferença de que, se a mecanização do trabalhador e a perda da autonomia já é uma realidade nos Estados Unidos e o filme de Chaplin é uma resposta a isso, Tati busca se antecipar ao fenômeno, torcendo para que ele nunca cruze o oceano e chegue até a França. Quase que como uma obra bucólica tardia sobre uma civilização rural ainda não tocada pelo tecnicismo, é como se Tati voltasse a graciosidade de um Renoir de Um Dia no Campo, só que a partir da ótica da comédia.

Por isso, a história que tem como base o dia-a-dia de um carteiro (vivido pelo próprio Tati) na pequena vila de Sainte-Sévère-sur-Indre é apenas um pano de fundo para que o diretor enfoque na temática das relações humanas, o que, por sua vez, desemboca em duas subtemáticas, tanto a do trabalho quanto a da vida em comunidade. Quanto a segunda, Jacques Tati sabe se aproveitar muito bem da deambulação do carteiro em suas entregas para ir explorando com muita graciosidade toda a geografia rural daquele microcosmo, fazendo da narrativa um grande joi de vivre (prazer da vida). Dentro dessa exploração, muitos personagens são apresentados quando cruzam o caminho com o carteiro, em um vai-e-vem constante pela narrativa, junto com suas piadas recorrentes, de modo que o filme também vai mapeando de maneira muito leve todo o estilo de vida, costumes e a comunidade daquela região.

Na metade de Carrossel da Esperança, o carteiro vivido por Tati entra em uma tenda de Cinema e se depara com um filme institucional sobre a rotina dos carteiros norte-americanos, que mostra, exageradamente, a modernidade e a eficiência de suas ações, o que faz com que o protagonista e seus amigos tentem imitar seu estilo após o choque diante do vídeo visto. A partir daí, a história entra em uma série de gags envolvendo a tentativa de adaptação por parte do protagonista, que busca agora métodos para ser mais efetivo em seu trabalho, o que por sua vez é o que vai tirando todo o charme de sua jornada vista anteriormente. Neste sentido, não deve ter cena mais simbólica do que o momento em que ele perde o controle da bicicleta e ela passa a andar sozinha, perfeitamente em pé, por um longo trajeto, representando a total descartabilidade do elemento humano neste processo de modernização das entregas.

Achar algo engraçado ou não é de uma esfera subjetiva, mas, o que se pode dizer de Carrossel da Esperança é que, objetivamente, existe, um leimotif (recorrência) em suas gags, que não são pensadas individualmente, mas existem dentro da temática do filme. Ora, se a segunda metade da narrativa é uma sátira sobre a mecanização do trabalhador, a primeira existe justamente como um contraponto através de uma celebração da imperfeição, da existência humana e seus inerentes erros, além de todos os encontros e ações em comunidade que só essa caminhada atrapalhada permite. Afinal, todos os encontros graciosos do filme só existem porque o protagonista está sempre se distraindo de sua tarefa individual para ajudar a coletividade daquela vila, se interessando pelos indivíduos que cruzam seu caminho ou se distraindo com o ambiente a sua volta. O medo de Tati é justamente que isso acabe.  

Basta pensar na seguinte cena do início, em que uma multidão se reúne para erguer manualmente o mastro com a bandeira da França (outro grande simbolismo). Esse momento de comunhão só existe porque o progresso técnico não chegou ali e não tem uma máquina para fazer o serviço que antes era artesanal. Ou seja, no fim, Carrossel da Esperança é um grande manifesto que suspeita das promessas do progresso técnico, da mecanização do trabalhador e seu perfeccionismo e, além disso, que teme pelo que a gradual abertura do país após a Segunda Guerra Mundial possa trazer da cultura exterior, principalmente se oriundo dos Estados Unidos. Pelo menos, que Carrossel da Esperança termine com um menino assumindo o posto do protagonista e dando continuidade para a tarefa de carteiro é como um sopro de esperança muito forte para que aquela cultura local, humana e imperfeita se mantenha e seja passada para uma nova geração. 

Carrossel da Esperança (Jour de Fête) — França, 1949
Direção: Jacques Tati
Roteiro: Jacques Tati, Henri Marquet, René Wheeler
Elenco: Guy Decomble, Jacques Tati, Paul Frankeur
Duração: 86 mins.

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