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Crítica | Carne Trêmula

por Marcelo Sobrinho
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Carne Trêmula representa, dentro da longa filmografia de Pedro Almodóvar, uma dupla ruptura. A forma almodovariana tão conhecida e hiperestilizada, beirando o kitsch e o folhetinesco, foi a grande marca de toda a primeira fase de sua carreira, que se inicia com filmes como Matador, de 1986, recebe a consagração definitiva com Mulheres à Beira de um Ataque de Nervosem 1988 e tem como último grande expoente o suspense sui generis Ata-Me!, de 1990. Esse fio condutor estético do cinema do espanhol só seria rompido de fato sete anos depois, com o drama estrelado por Javier Bardem e Francesca Neri, em que o exagero dava lugar à sobriedade e o rocambolesco ao ponderado. Carne Trêmula mantem o protagonismo de personagens emocionalmente instáveis, mas o roteiro claramente os desenvolve sem tantos histrionismos.

Os alívios cômicos tão rasgados e temperados com altas doses de ironia se ausentam. No longa-metragem de 1997, há apenas um momento de comicidade (quando Víctor e David interrompem uma briga para assistir a um gol na televisão). A intenção também muda. Não mais gracejar sobre caricaturas, mas sim expor a fragilidade dos dois homens em seu tolo embate. O segundo ponto de revolução que o filme expõe está intimamente ligado a isso. Agora são os homens que se destacam dentro do enredo. Seu destempero, suas inseguranças, seus medos e seu louco modo de amar ganham os holofotes pela primeira vez em toda a obra de Pedro Almodóvar. Carne Trêmula é um ponto fora da curva dentro de uma filmografia tão alinhada com o universo feminino. É no mínimo interessante deparar-se com o diretor espanhol abandonando sua zona de conforto tanto estética como tematicamente e ele se arrisca na dupla mudança de rota em um mesmo filme. O resultado não poderia ser melhor.

Há também um subtexto político já inserido na introdução da obra. A Espanha vivia uma ditadura e isso impactava diretamente no comportamento de seus cidadãos. Basta que examinemos a famosa cena do parto de Víctor para entendermos a antítese ali proposta. Enquanto o motorista tentava negar ajuda à parturiente Isabel (ecoando a rigidez de um regime de opressão), a vida em sua dimensão de imprevisibilidade e de urgência se impunha à sua recusa (um parto inevitável e totalmente improvisado dentro do ônibus). O momento é belissimamente construído. Uma grua realiza um travelling in vagaroso, enquanto toda a ação se dá à distância. Quando o ônibus é totalmente enquadrado, Almodóvar para a câmera e é a vez de o veículo se mover, saindo do quadro e deixando à vista a mensagem escrita no muro – “Liberdade! Abaixo o estado de exceção!”. Apenas um diretor com muita inteligência seria capaz de um raciocínio estético tão preciso para dizer tanto em tão poucos minutos. Uma das cenas mais antológicas do cinema de Pedro Almodóvar, sem dúvidas.

O trabalho de direção é cuidadoso em muitos outros momentos. Quando Víctor chega para dar seus pêsames a Elena na cena do funeral, o espanhol fecha seu plano no rosto da personagem enlutada, surpreendendo o público com a súbita aproximação do rapaz do mesmo modo que a própria protagonista se surpreende. Almodóvar trabalha muito bem os planos abertos e os fechados em Carne Trêmula, assim como usa de modo interessante o plano holandês nas cenas em que os personagens masculinos se enfrentam. Isso ocorre quando David e Víctor discutem na escola onde Elena trabalha e quando David revela a Sancho o caso de sua esposa com Víctor. Se a ironia na primeira fase almodovariana é escrachada, aqui o cineasta a insere na própria escolha de quadros. O plano holandês parece fazer troça das tentativas de auto-afirmação de homens que passam todo o tempo tentando demonstrar força e poder, quando, na realidade, se encontram completamente sob o jugo das paixões, que os perturbam e os desgovernam.

Essa é a essência maior do longa-metragem. Seus homens medem-se por forças insignificantes se comparadas àquelas que os conduzem à ruína. Víctor mantem-se atado a Elena por uma mistura de vingança e desejo. David, privado de sua capacidade física como uma fera enjaulada, demonstra toda a insegurança de um homem que se alimenta unicamente de seu medo da perda. Sancho, por sua vez, aprisiona Clara em sua vida simplesmente por ele mesmo estar aprisionado a ela. Sua fala no desfecho da obra é absolutamente esclarecedora – “Minha vida se resume a isto: eu me arrastando para estar perto de você”. Almodóvar mais uma vez exibe a sensibilidade de um grande cineasta ao transformar a literalidade em metáfora, clarificando o que há de mais central em seu filme. Carne Trêmula se encerra ciclicamente, com o retorno do comentário político em mais uma cena de parto, mas agora com um desfecho diametralmente oposto. A Espanha havia mudado bastante enquanto país e Víctor e Elena haviam feito o mesmo enquanto homem e mulher.

O filme de Pedro Almodóvar, que revelou Javier Bardem para o mundo, inaugura a melhor fase da carreira do diretor. Depois dele, o espanhol produziu uma brilhante safra de longas-metragens, incluindo as obras-primas Tudo Sobre Minha Mãe, Fale com Ela, Volver e A Pele que Habito. Surgia enfim um cineasta maduro, que não abria mão de colocar sua impressão digital em seus novos filmes, mas que aprendera a explorá-los sem errar a mão nos espalhafatos.

Carne Trêmula (Carne Trémula) – Espanha, 1997
Direção: Pedro Almodóvar
Roteiro: Pedro Almodóvar, baseado no livro homônimo de Ruth Rendell
Elenco: Javier Bardem, Francesca Neri, Liberto Rabal, Ángela Molina, José Sancho, Penélope Cruz, Pilar Bardem, Álex Angulo, Mariola Fuentes.
Duração: 103 minutos

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