- Há spoilers somente do arco anterior.
Ficou evidente em Inverno na América, o primeiro volume da nova fase dos quadrinhos do Capitão América, desta vez capitaneada por Ta-Nehisi Coates, que havia história ali para ser contada por um bom tempo se o autor soubesse cadenciar sua narrativa. Uma nova organização inimiga infiltrando-se nos escombros dos EUA deixados pela derrocada do Império Secreto do doppelgänger maligno de Steve Rogers era um assunto fascinante por si só, algo amplificado pela discussão séria sobre o simbolismo do Capitão América, simbolismo esse que começou a ruir fortemente na saga em que ele (o símbolo) passou a ser sinônimo de uma ditadura cruel, mas que o próprio Coates inteligentemente relativizou nas seis primeiras edições como um pano de fundo muito interessante e que faz pensar.
No segundo arco, o roteirista tira muito da complexidade que imprimiu ao primeiro, recorrendo a um artifício já bastante clichê na carreira editorial do Capitão América: ele ser acusado de um crime que jamais, em hipótese alguma, cometeria. O crime é a morte do ex-general Thaddeus “Thunderbolt” Ross, que acontece ao final da edição #6. O começo do arco, portanto, lida com exatamente isso, levando Steve Rogers mais uma vez para a prisão. Claro que tudo é parte de um plano intrincado da Elite do Poder para destruir a reputação do Capitão América e eu entendo e aceito perfeitamente essa escolha de Coates aqui, até porque ele faz questão de reconhecer por várias vezes que sim, isso já aconteceu mesmo antes com o Bandeiroso, só que agora o “buraco é mais embaixo”.
Em outras palavras, nada contra o uso desse artifício mais do que batido para o personagem, até porque a execução da proposta é sem dúvida interessante, com Rogers sendo enviado para a mais nova prisão privada para seres super-poderosos, a Myrmidon, cujo diretor é ninguém menos do que seu arqui-inimigo Barão Von Strucker que ganhou favores do governo americano ao trair a Hidra em Império Secreto, o que reitera o quão de cabeça para baixo estão os EUA da Marvel Comics (afinal, o Rei do Crime é prefeito de Nova York ainda por cima!). Mas interessante não quer dizer original é Coates, pela forma como escreve, telegrafa cada evento seguinte, retirando um pouco a graça do arco como um todo, que é quase que exclusivamente dedicado à prisão de Rogers.
Do lado de fora, uma surpresa: Sharon Carter, que continua idosa, mas duvido que por muito mais tempo, logo depois que Rogers se entrega às autoridades, convoca a reunião das Filhas da Liberdade como se fosse a coisa mais normal do mundo. Coates retira inspiração desse grupo histórico de mulheres que, em 1765, reuniu-se para lutar contra a taxação britânica nos EUA, para dar uma espécie de ancestralidade ao que ele inventa aqui, ou seja, que diversas super-heroínas do Universo Marvel reúnem-se secretamente sob o codinome Filhas da Liberdade. Dentre elas temos Sue Storm, a Mulher Invisível, Jessica Drew, a Mulher-Aranha, Bobbi Morse, a Harpia, Maya Lopez, a Eco e diversas outras já conhecidas sob a liderança da misteriosa Dríade, cuja identidade é revelada na cena pós-crédito da última edição do encadernado, mas que não direi aqui quem é para não estragar a surpresa.
Tenho eterna implicância com retcons marretados na narrativa e é isso que Coates sem dúvida faz aqui. Pode até ser que, mais para a frente, ele explique a lógica e a origem desse grupo 100% feminino, mas a questão é que, no lugar de preparar o leitor para esse desenvolvimento, ele simplesmente o coloca na história para convenientemente arrumar um jeito de ter um supergrupo à tiracolo para ajudar Steve Rogers sem precisar atrapalhar outros supergrupos comuns. Chega a ser injusta com o leitor essa saída fácil. Injusta e desnecessária, pois, se uma coisa que não falta ao Capitão América é aliado pronto para sacrificar-se por ele, vide Bucky, Falcão e a própria Sharon. O supergrupo feminino pareceu-me mais aquela típica bobagem feita para tornar-se um spin-off editorial depois, até porque, com exceção de Sharon, Sue Storm e Dríade, as demais quase não aparecem.
Mesmo assim, a leitura é fácil e agradável, com Coates visivelmente sem pressa de contar sua história macro, o que é ótimo. Afinal, acabamos o novo arco sem ainda entender o plano mestre da Elite do Poder e com Rogers em uma situação não muito melhor do que a que vimos ao final do primeiro volume. Em outras palavras, há muita história ainda para contar. Além disso, Adam Kubert entra na arte de todas as edições do encadernado, substituindo Leinil Francis Yu e ele faz um excelente trabalho não só na abordagem dos personagens, como também na fluidez dos quadros das páginas, sem medo de experimentar novas composições.
Capitão de Nada termina de desfazer o Capitão América como símbolo. Mas ainda há muito a ser revelado e desenvolvido por Ta-Nehisi Coates. Mesmo que o autor aqui tenha recorrido a saídas fáceis, fica evidente que o material que ele tem em mãos para trabalhar é rico o suficiente para fazer valer o acompanhamento dessa história.
Capitão América: Capitão de Nada (Captain America: Captain of Nothing, EUA – 2019)
Contendo: Capitão América: Vol. 9 (2018 – ) #7 a 12
Roteiro: Ta-Nehisi Coates
Arte: Adam Kubert
Cores: Frank Martin
Letras: Joe Caramagna
Capas: Alex Ross
Editoria: Tom Brevoort, Alanna Smith
Editora original: Marvel Comics
Data original de publicação: janeiro a julho de 2019
Páginas: 153