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Crítica | Cão Branco

por Leonardo Campos
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Por mais que os simpatizantes ao discurso de ódio tentem, não há qualquer desculpa aceitável para a perpetuação do ódio racial que ainda é e, em meu ponto de vista talvez muito pessimista, mas bastante realista, será uma das sinas eternas da humanidade. O tema, amplamente discutido na mídia e na produção cultural encontrou ecos no desenvolvimento de Cão Branco, um filme que não é necessariamente uma narrativa do subgênero horror ecológico, mas tangencia em diversos pontos, dentre eles, a questão de ser um animal a grande ameaça física aos personagens que servem como vítimas em potencial. Amaldiçoado numa época prévia ao que hoje chamamos de cultura do cancelamento, o filme sofreu cortes orçamentários, foi arquivado pela Paramount, dentre outros mecanismos para escondê-lo depois que a mídia divulgou informações e vários grupos de causas sociais se manifestaram contra uma história de horror sobre um cão assassino que ceifa a vida de pessoas negras. Equivocada, a campanha destruiu a possibilidade de a produção demonstrar o seu potencial e discutir de fato o contrário, isto é, a falta de justificativa para o ódio racial. Por meio de saturação de estímulos, o tal animal passará por uma transformação, exposta e debatida com muita propriedade pelos realizadores desta história de incompreensão.

Esse é o principal tema do filme, na época, interpretado de outra forma, haja vista a quantidade de polêmicas que pulularam nos debates especializados e na seara popular, no poderoso senso comum do público consumidor. Observado com distanciamento, Cão Branco na verdade propõe discussões sobre a falta de legitimidade dos discursos de ódio racial, algo considerado irracional, alegorizado com a própria condição do cachorro algoz que ao longo dos 90 minutos do filme, passará por um processo de readaptação por meio de um polêmico e intenso treinamento. Produção derradeira de Samuel Fuller, um cineasta subversivo, em território estadunidense, a narrativa supostamente incitadora de violência contra pessoas negras é um manancial de emoções fortes, debates sobre questões de família e relacionamentos humanos, além de promoção de reflexões sobre os conceitos de moral e ética, temas que muitas vezes nós deixamos apenas no campo da teoria, tendo em vista a complexidade das práticas sociais cotidianas.

Na trama, a discussão sobre a estupidez do racismo é catalisada quando a jovem atriz Julie (Kristy McNichols) atropela um pastor-alemão e o leva para casa após os cuidados. Ele se torna o seu cão companheiro e adentra de maneira envolvente em seu dia a dia. O problema é que ao passo que a narrativa avança, a moça percebe um comportamento nada adequado por parte do cachorro, um animal que absurdamente, parece ter sido treinado por seu antigo dono para atacar pessoas negras. Apavorada diante da situação, após alguns momentos de puro horror promovido pelo cão em um set de filmagens onde Julie contracenava com uma colega negra, bem como a famosa cena do ataque dentro de uma igreja, ela decide colocar o animal num centro de treinamento intensivo, com exposição a determinadas táticas da psicologia que preenchem o filme de alegorias, ao invés de permitir que a história trafegue exclusivamente pelo clichê do animal assassino ceifador de vidas.

Para nos contar essa história, o cineasta Samuel Fuller conta com a favorável direção de fotografia de Bruce Surtees, setor que flerta com um assertivo jogo de luzes e sombras, além de dialogar bem com o design de produção de Brian Eatwell na concepção das paletas de cores. Sempre posicionada de maneira a criar quadros eficientes e com alto teor artístico, a movimentação da câmera em Cão Branco sabe exatamente o momento de contemplar e a hora certa de agitar tudo e causar tensão durante as passagens de interação do cachorro perigoso com as suas vítimas. Ennio Morricone, um dos maiores mestres da música para cinema, concede a honra de sua ilustre presença, com uma textura percussiva intensa, conectada com as tensões promovidas pelo filme que falha em seu ritmo entre um ponto e outro, mas no geral, consegue ser acima da média, um exemplar digno para excelentes discussões sobre tensões raciais em nossa sociedade. Stan Winston e John Frazier, responsáveis pelos efeitos e próteses, também são concessores de maior dignidade visual para o filme, infelizmente pouco conhecido e marginalizado.

No treinamento, Keys (Paul Winfield) é o responsável por condicionar o animal dentro de um esquema rígido e cheio de táticas, como já mencionado, da psicologia comportamental. Ele é negro e por meio de estímulos visuais, promove o processo de reajuste do animal, algo que culmina em questões essenciais para a dinâmica dramática de Cão Branco, tal como um dos pontos cruciais de reflexão, em meu ponto de vista, no filme em geral: seria o racismo tão irracional quanto o animal da trama em si? Assim como o cão treinado, somos moldados pela sociedade? Fica a reflexão. Você, caro leitor, o que acha?

Cão Branco (White Dog, EUA – 1982)
Direção: Samuel Fuller
Roteiro: Curtis Hanson, Samuel Fuller
Elenco: Kristy McNichol, Paul Winfield, Burl Ives, Vernon Weddle, Jameson Parker, Christa Lang, Karl Lewis Miller, Karrie Emerson, Helen Siff, Marshall Thompson,
Duração: 95 minutos

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