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Crítica | Cangaço Novo – 1ª Temporada

Política, fraternidade e sangue.

por Luiz Santiago
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As revisões de gêneros no audiovisual estão constantemente acompanhadas por uma alteração na proposta dos dramas ao longo do tempo, seguindo a mudança da mentalidade social, da tecnologia envolvida para produzir essas obras, e, principalmente, por uma conjuntura histórica que gera novas necessidades, impulsionando artistas a rever padrões clássicos com base em problemas do presente. Em cenários que tocam conflitos políticos, grupos sociais, etnias, questões ligadas à terra e suas riquezas, temos no faroeste o “gênero primordial“, e nos anos 1970, vimos a grande transformação de abordagem pela qual passou, inclusive com produções de caráter urbano, como no excelente Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia (1974), por exemplo. No Brasil, o sertão, o semiárido, a caatinga, o Nordeste foram plasmados nas telas de diferentes formas ao longo dos anos, sempre mostrando diferenças e problemas de classe, direta ou indiretamente ligados à política, como nos casos de O Cangaceiro (1953), Nordeste Sangrento (1962) ou Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964).

As revisões para nordestern exploraram o poder e privilégios dos latifundiários, a corrupção entranhada nos mais diversos estratos sociais (justiça, polícia, religião, cidadãos comuns, cargos públicos), a violência contra qualquer um que se levante contra famílias controladoras de um determinado espaço, as péssimas condições de vida dos trabalhadores (que morrem de fome e sede) e as muitas faces da luta pela igualdade e pela mudança de status quo. Em filmes como Serra Pelada (2013), O Matador (2017) e Sertânia (2019), os diretores propuseram um novo olhar sobre este lado ainda vivo e, em muitos aspectos, estagnado do país, o mesmo caminho que vemos trilhar a série Cangaço Novo (2023), que toca em todos os problemas estruturais típicos da região Nordeste, Norte e Centro-Oeste do Brasil (embora, em condições históricas e organização social distintas, também ocorram no Sul e Sudeste).

A série é um verdadeiro portento da televisão nacional. Sob a direção de Fabio Mendonça e Aly Muritiba, os oito episódios constroem, com imenso poder dramático, a jornada de Ubaldo, que retorna ao Ceará a fim de reclamar para si uma herança, e acaba sendo  moldado e levado por eventos dos quais nunca imaginou fazer parte. A série parte de um ponto mínimo — a vida sem dinheiro de um homem que acabou de ser demitido e não tem condições de cuidar do pai doente — e aumenta o foco de ação progressivamente, adicionando problemas de uma comunidade muito pobre, sem acesso a água e prestes a perder a pouca terra que tem. É a história dos pequenos agricultores do Brasil. É a história das famílias soterradas por dívidas e que terão sua situação piorada pela ação dos bancos. E essas histórias são contadas aqui a partir de um bando de “novos cangaceiros” assaltantes de banco, com os episódios alternando entre cenas do passado (numa bela conversão para fotografia em preto e branco), ação cativante e intensa, e estudo detalhado de cada um dos personagens principais.

O presente dramatúrgico, nesse caso, vem de todo o elenco. Não há um único elo fraco. É impressionante o trabalho de escalação de novos talentos (e de veteranos também, vide a presença da sempre marcante Marcelia Cartaxo) e tudo o que a direção consegue tirar desses atores e atrizes. O destaque absoluto, contudo, vai para o trio formado por Allan Souza Lima (Ubaldo), Alice Carvalho (Dinorah) e Thainá Duarte (Dilvânia). São três interpretações bem diferentes, com arcos de desenvolvimento que vão para lados opostos, e com um resultado na tela que dá gosto de ver. Não estamos falando aqui de presenças que estão o tempo inteiro gritando e estrebuchando na tela. Pelo contrário, são atuações com muita contenção e silêncio, guiadas por olhares, gestos e expressões faciais — especialmente o caso de Thainá Duarte, cuja personagem não fala. Juntos, eles conseguem transportar o espectador para as mais plurais atmosferas psicológicas e sentimentais, fazendo com que o público se aproxime e tenha plena empatia por esses indivíduos em cena, algo que hoje está cada vez mais difícil de se ver.

A relação entre cenários urbanos, assaltos a bancos e coletivo de moradores na região do sertão criam uma interessante variedade de atmosferas dramáticas, mantendo a atenção do público o tempo inteiro ativa. As cenas de assalto são bem dirigidas, com uma coreografia de operação dos cangaceiros intensificando o suspense a cada novo roubo, mantendo-nos curiosos pelo que virá a seguir. Partimos de operações violentas, que nada se importavam com a vida de inocentes e roubava também de quem nada tinha (embora essa não fosse a postura de todos os ladrões do bando) para operações estruturalmente inteligentes, como no caso do último roubo. O requinte de detalhes dos assaltos e o nível de tensão que os diretores criaram, acompanha o arco de endurecimento e amadurecimento de Ubaldo, que assume o comando do grupo e, na reta final, está cada vez mais inserido na política da cidade. O líder do grupo inimigo, Gastão Maleiro (Bruno Bellarmino), usa de todos os recursos que uma família há anos no poder pode usar para vencer as eleições, apresentando um antagonismo legítimo, com implicações em muitas áreas e consequências insuperáveis, como as que vemos no final da temporada.

O acúmulo de acertos em Cangaço Novo, para além da história relevante e bem contada, ou do elenco soberbo, está na escolha das locações, nos excelentes atores nordestinos escalados (para mim, a série já começou a ganhar pontos antes mesmo de eu assisti-la, por se recusar a fazer caricatura de nordestinos, com sotaque falso); nos figurinos e músicas escolhidas, na ação explosiva e construção de personas dramáticas impressionantes, como Lino (Pedro Lamin, namorado de Dinorah, um dos modelos de masculinidade mais incríveis que eu já vi em produções brasileiras para a TV); e no cuidado da direção em mostrar para o público acontecimentos que influenciam os personagens e crescimento ou regressão desses mesmos indivíduos, motivados pelo que está à sua volta. Nada aqui é raso, polarizado ou colocado em meias-palavras. Cangaço Novo é uma série muito direta sobre a podridão nos altos e baixos escalões da sociedade; sobre a violência cometida por aristocratas e miseráveis; sobre as muitas intenções e comportamentos humanos na sociedade em que vivemos. É a fina flor da televisão brasileira mostrando que temos ideias e pessoal para fazer obras-primas em nosso território. E o melhor de tudo: uma produção que chama a atenção para problemas verdadeiros, com sentimentos e dores sobre uma realidade conhecida por milhares de brasileiros ainda em nossos tempos. Um colossal soco no estômago.

Cangaço Novo – 1ª Temporada (Brasil, 2023)
Direção: Fabio Mendonça, Aly Muritiba
Roteiro: Fernando Garrindo, Mariana Bardan, Eduardo Melo, Erez Milgrom
Elenco: Alice Carvalho, Thainá Duarte, Allan Souza Lima, Marcelia Cartaxo, Luciano Pontes, Ricardo Blat, Luiz Carlos Vasconcelos, Vertin Moura, Ane Oliva, Ênio Cavalcante, Pedro Wagner, Adélio Lima, Arthur Canavarro, Guilherme Leal, Bruno Goya, Rafael Amancio, Robson Medeiros, Rafael Losso, Bruno Bellarmino, Pedro Lamin
Duração: 8 episódios com cerca de 50 minutos, cada um

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