Home FilmesCríticas Crítica | Caminhos Cruzados (2024)

Crítica | Caminhos Cruzados (2024)

Sobre o otimismo de Levan Akin.

por Frederico Franco
263 views

Levan Akin precisa de apenas cerca de quinze minutos para estabelecer de maneira sólida a ideia governante de seu longa-metragem: dois desconhecidos, unidos, embarcam em uma tortuosa viagem em busca de outra desconhecida para o público. Trata-se de Lia, professora de história, e Achi, morador de uma pequena vila georgiana, rumando para Istambul em busca de Tekla, sobrinha trans da senhora. Nesse curto espaço de tempo já é estabelecida a principal dinâmica entre personagens de Caminhos cruzados: Lia, pessoa de pouca paciência, e Achi, jovem rebelde. Ambos são responsáveis por entregar ao espectador situações cômicas e, em certo ponto, trágicas. Lia prefere o silêncio, Achi gosta da confusão, do barulho; ela é contida, recatada, enquanto ele é expansivo, extremamente sociável. Tais diferenças, construídas através de uma abordagem realista, são trunfos utilizados pelo diretor para entregar comicidade e, por outro lado, dramaticidade intensa entre os protagonistas.

Se em Paisagem na neblina Theo Angelopoulos aposta em uma melancolia construída pelas dificuldades enfrentadas pelos personagens principais, em Caminhos cruzados Levan Akin parece se apoiar mais fortemente em instantes de humor. Se os tensionamentos do filme grego são construídos a fim de expressar certa misantropia, o caso georgiano vai pelo caminho contrário: aposta em relações de afeto genuíno entre seres humanos. O senso de camaradagem aqui explorado é latente; um apoiando o outro, contando com a boa vontade e senso de humanidade alheia. As dificuldades enfrentadas por Lia e Achi, se não superadas, são enfrentadas de cabeça erguida, sempre com a ajuda de terceiros. A visão de Akin, de certa forma, é otimista no que diz respeito às relações humanas. Em meio aos problemas apresentados, a coletividade fala mais alto. Sejam cafetões, donos de hotéis ou até mesmo empresários desconhecidos: todos estendem suas mãos para os protagonistas sem esperar nada em troca. Aqui, uma mão lava a outra. A união é valorizada por todos nessa espécie de road movie turco-georgiano. 

Paralelamente à odisseia de Lia e Achi, Levan Akin apresenta a figura de Evrim, uma advogada e ativista transsexual que luta para conseguir seu documento de identidade enquanto mulher. O diretor domina essa personagem tão bem ao ponto de manipular o espectador com maestria: durante boa parte da obra, parece implícito que, na verdade, Evrim trata-se da sobrinha perdida de Lia após trocar seu nome. O olhar otimista do diretor também se estende à esfera da nova personagem. Existe, aqui, uma personagem livre, que afronta o sistema e seu preconceito com bravura quase indômita. Além disso, após acompanharmos uma desilusão amorosa de Evrim, logo em seguida é apresentada uma situação de ternura, amor. A mulher finalmente conhece alguém que, além de valorizá-la, também não apresenta vergonha alguma de se relacionar com uma pessoa trans. Evrim é só sorrisos, uma pessoa também muito marcada por uma moral baseada na coletividade; ela, entre seus problemas pessoais, também dá conta de cuidar de um pequeno órfão que transita pelas vielas de Istambul.

Quanto mais tempo passa, tem-se cada vez mais forte a ideia de que Tekla, na verdade, não existe. Ninguém a viu, ninguém a vê. Não se sabe nada sobre ela, muito menos como se parece. Tekla é uma ideia, um ser fantasmagórico, que aparenta existir apenas no imaginário de sua tia. Por outro, é razoável concluir que talvez Tekla não queira ser encontrada. Entrar em contato com Achi seria, para ela, entrar em contato com um passado que não lhe pertence mais. Fica explícito nas entrelinhas que sua foga está diretamente ligada à má aceitação de sua identidade por sua família. Por mais que não se conheça Tekla, sabe-se que ela merece ser livre, desprendendo-se daquilo que a escarificou para toda a vida. Essa dor, essa cicatriz, não some com o tempo. E voltar no tempo não é a melhor das decisões. Por maior que seja a ternura que Lia sinta por Tekla, não é justo a obrigar a retornar para um momento muito pautado pela dor e pelo remorso. Não seria justo com ela. O humanismo de Akin não deixaria algo assim acontecer com sua personagem.

Aos poucos, Lia vai perdendo as esperanças. Quanto mais negativas vai recebendo, mais uma apatia toma conta de seu semblante. Por mais que a potência juvenil de Achi e Evrim sirva como combustível, ainda assim não parece o suficiente. Juntos, no entanto, os três entregam ao espectador um conforto ao nos deixar sorrir com o grupo em uma catártica dança em uma festa. Mesmo exausta, Lia entrega toda sua energia restante à pista de dança. Ali, é construído um derradeiro momento de ternura. Lia se vê liberta, sorridente, assim como Evrim e o desajeitado Achi. No final das contas, tanto o rapaz quanto a mulher são, para a professora, uma forma de consolo. Tudo aquilo projetado em sua sobrinha perdida, ela encontra nesses peculiares companheiros de viagem. 

O otimismo de Levan Akin é marcante. Mas sua capacidade de esfacelar as esperanças do espectador é igualmente forte. Encaminhando para o final do filme, Lia, surpreendentemente, encontra Tekla. Ambas compartilham, em um momento intimista, uma troca de ternuras. No entanto, não passava de uma projeção da mente de Lia. Tekla não foi encontrada. Ela não passa de um delírio, de uma memória fugidia. O diretor, aqui, é brutal. Dá ao espectador o gosto doce do encontro mas, logo em seguida, desfaz essa sensação açucarada. No geral, isso condiz com o humanismo de Akin. Tekla não merece o passado, não seria justo com ela.

Caminhos cruzados (Crossing) – Dinamarca, França, Geórgia, Suécia, Turquia, 2024
Direção: Leven Akin
Roteiro: Levan Akin
Elenco: Mzia Arabuli, Lucas Kankava, Deniz Dumanli
Duração: 106 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais