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Crítica | Caminhando Contra o Vento

por Ritter Fan
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A sequência de abertura de Caminhando Contra o Vento é emblemática. Uma sequência de carros brancos iguais movimenta-se lentamente em fila indiana em uma pista preparada para treinamento de autoescola, até que um dos alunos se cansa, abandona o carro e sai andando, desistindo de obter a carteira. Há, aqui, a exposição temática do longa, que até pode ser resumida em não-conformidade da juventude sobre o que se espera dela, mas que vai além, pois a grande crítica é justamente a imposição de uniformidade e a falta de aceitação de qualquer um que tenta ser ou fazer diferente.

Para abordar essa questão, Wei Shujun, diretor chinês em sua estreia em longas, usa uma abordagem semi-autobiográfica, com a criação do protagonista Kun (Zhou You), estudante de engenharia sonora na faculdade de cinema que, claro, é uma representação do próprio diretor. Desafiador, Kun acha que já sabe tudo que seus professores têm a lecionar e, por isso, não consegue levar a sério as aulas, trabalhando em projetos de gravação de som (operador de boom) com seu inseparável amigo Tong (Tong Lin Kai). Na verdade, não é que ele realmente saiba tudo, mas sim que ele parece não se sentir desafiado momento algum, não conseguindo entrar “nos carros iguais” impostos de cima para baixo, com  sua rebeldia materializando-se na forma da compra, com cada centavo de suas economias, de um velho veículo utilitário esportivo, modelo de 1997, que passa a ser onipresente na película.

O que decorre daí é uma lenta progressão que lida com Kun na faculdade e seu conflito com o professor e em seu emprego, em uma produção comandada por Ming (Wang Xiaomu), diretor de característica autoral, mas com viés pretensioso, quase uma caricatura, no relacionamento com a namorada Zhi (Zheng Yingchen), que é pragmática, o que cada vez mais os afasta e também com seus pais, de um lado a mãe professora que nunca exatamente vemos, mas que é importante na narrativa e seu pai policial, constantemente colocando panos quentes em tudo que Kun acaba fazendo. O que o diretor e co-roteirista claramente mostra é que não há saída ou, pelo menos, perspectiva de saída. Caminhando Contra o Vento pode ser visto como fruto de frustrações de um estudante de cinema em uma sociedade que não lhe dá meios para expressar sua criatividade, o que empresta um forte caráter metalinguístico e, claro, funciona como ironia fina, já que o longa é justamente Wei (ou Kun) expressando sua criatividade.

Confesso que não gosto muito do caminho que o roteiro encontra para preencher o miolo da narrativa, envolvendo Kun em maracutaias para conseguir dinheiro sem precisar pedir aos pais. Não que elas sejam implausíveis, mas sim porque elas parecem existir para criar empatia com o protagonista, mas que, na verdade, têm o efeito contrário, notadamente a fraude que ele comete em prejuízo de sua própria mãe sem sequer pensar duas vezes. É como se o diretor estivesse afirmando o jogo sendo jogado é de vale tudo e que a balança moral não se aplica, o que automaticamente cria um problema sério para seu protagonista e, de tabela, para ele próprio considerando o aspecto biográfico da obra.

Mas o caminho da narrativa, as críticas ao sistema uniforme – e não falo especificamente da China, pois o filme funciona além de suas próprias fronteiras – e ao que se espera dos jovens é bem estabelecido, inclusive levando a um abordagem de road movie mais para o terço final (antes disso, daria até para classificá-lo de road movie urbano, uma contradição em termos, mas que faz sentido considerando sua conexão com o carro “novo” que muito claramente representa sua tentativa de liberação dos limites impostos a ele) em que o vemos dirigir até a Mongólia interior para trabalhar em filmagens extras da obra de Ming, que mantém seu monólogo que cita nomes de grandes cineastas (Wong Kar Wai e Hong Sang-soo, mais especificamente), comparando-se a eles em uma atitude absolutamente patética, mas que define muito bem o tipo de personagem que ele é.

E a jornada, ainda que breve e com uma leve pegada mais contemplativa, tem resultados práticos para a vida de Kun, sendo quase como a materialização de uma promessa feita pelo protagonista para sua namorada, mesmo que acontecendo quando já é tarde demais. É seu primeiro momento “conhecendo o mundo” e existe uma beleza e lirismo na forma como isso é executado por Wei Shujun, quase que com um olhar melancólico e, diria, pessimista para o futuro de seu personagem, algo que é reiterado pela trilha sonora discreta de Emanuele Arnone que marca com franqueza os acontecimentos, sem embelezá-los.

Caminhando Contra o Vento é uma bela obra de estreia do cineasta chinês que não tem receio de basicamente afirmar que ele próprio parece não ter muita saída em relação à sua arte. Escapar de moldes exige primeiro o reconhecimento de que eles existem e isso ele faz muito bem. Resta saber se, uma vez deixando este longa para trás como um contundente lembrete de como essas barreiras de conformidade são, Wei Shujun possa realmente deslanchar.

Caminhando Contra o Vento (Ye Ma Fen Zong / Striding Into the Wind – China, 2020)
Direção: Wei Shujun
Roteiro: Gao Linyang, Wei Shujun
Elenco: Zhou You, Wang Xiaomu, Tong Lin Kai, Zheng Yingchen
Duração: 130 min.

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