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Crítica | Camelot 3000

por Ritter Fan
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estrelas 5,0

As lendas arturianas são absolutamente fascinantes. Desde o clássico Le Morte d’Arthur, que Sir Thomas Mallory escreveu no século XV compilando contos, lendas e material próprio sobre o Rei Arthur e aqueles que tradicionalmente o cercam, passando por O Único e Eterno Rei, de T.H. White, publicado em partes ao longo de décadas e material ficcional recente, como As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley e a trilogia As Crônicas de Artur, de Bernard Cornwell, o vasto material sobre as aventuras – verdadeiras ou apenas mesmo fruto de lenda – dessa figura capturam a imaginação mundo afora. Basta ver como, da literatura, o material pulou facilmente para a Sétima Arte, com dezenas de filmes e séries que de alguma forma abordam a lenda, como a animação A Espada Era a Lei, o musical Camelot, o escrachado Monty Python e o Cálice Sagrado e o místico Excalibur, passando por genuínas porcarias como a série Camelot.

Nos quadrinhos vários elementos formativos das lendas já foram utilizadas, especialmente a espada Excalibur, mas há impressionantemente pouca coisa realmente dedicada à adaptar esse mito. Mike W. Barr, que criou o conceito dessa história em 1975 e demorou alguns anos até propor uma maxissérie em quadrinhos para a DC Comics, assumiu riscos, mas entregou um trabalho arrebatador que, ainda que para alguns possa soar datado, em seu conjunto forma uma das melhores obras não super-heroísticas de editora mainstream.

Camelot 3000, como o título deixa a entrever, arremessa a lenda do Rei Arthur para mil anos no futuro. Diz a lenda, que o “único e eterno rei” voltaria quando a Inglaterra mais precisasse e, nesse futuro criado por Barr, não só a Inglaterra precisa de ajuda, como o mundo todo. Afinal, uma misteriosa raça alienígena, oriunda do 10º planeta de nosso sistema solar (hoje seria o 9º, com a desclassificação de Plutão…) ataca nosso planeta sem perdão e, como nesse futuro hipotético, depois de uma Terceira Guerra Mundial, as nações deixaram de investir em viagens interplanetárias, a tecnologia de defesa está aquém do necessário.

Nesse cenário mortal, Tom Prentice, estudante de arqueologia, acaba descobrindo o túmulo do Rei Arthur em Glastonbury, acordando-o no processo de fugir da morte certa pela mão dos E.T.s. O rei, vestido com cota de malha dourada, com colete vermelho (sim, um tanto ridículo, mas perfeitamente perdoável), logo aniquila os caçadores de Tom e os dois, juntos, vão até Stonehenge libertar ninguém menos do que o mago Merlin das garras da fada Nyneve.

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As capas americanas dos seis primeiros números.

A partir daí, a narrativa estabelece um ritmo insano, com novas encarnações de alguns cavaleiros Távola Redonda sendo acordadas pelos heróis para que se juntem à ação. Vemos Sir Kay, Sir Galahad, Sir Tristan, Sir Percival, Sir Gawain e, claro, Sir Lancelot e a Rainha Guinevere acordando de um sono profundo dentro de pessoas diferentes. Lancelot, por exemplo, é um multimilionário francês que ajuda refugiados da guerra e tem um castelo em um asteroide em órbita da Terra que passa a ser a Nova Camelot. Kay, meio-irmão de Arthur, é um jogador incurável que foge de seus credores. Galahad é um samurai em desgraça, que acabou de perder seu mestre (portanto, um ronin) e está prestes a cometer seppuku. Gawain é um negro sul-africano pai de família. Percival é um monstro geneticamente alterado. Tristan reencarna como mulher, para seus desespero e, finalmente, Guinevere é a valente comandante militar americana Joan Acton.

Com essas novas identidades para tradicionais personagens, Barr consegue abordar questões pioneiras que só muitos anos depois passariam a fazer parte do cotidiano dos quadrinhos, mas mesmo assim com as editoras criando “eventos” marketeiros para vender sua modernidade. Enquanto hoje, um beijo gay em quadrinhos é manobrado para vender a imagem da editora e não a diversidade sexual propriamente dita e a alteração da cor da pele de um personagem vira motivo para a editora bater no peito para fincar sua bandeira na diversidade racial, Barr – e uma DC Comics de outra era – fez exatamente a mesma coisa, mas de maneira elegante, discreta e organicamente inserida dentro da trama. Preconceito racial? Basta ver como Percival é tratado por seus próprios pares na narrativa. Preconceito de gênero? Barr joga Tristan – um homem preso no corpo de uma bela mulher – em um mundo masculino que não o perdoa. E o autor não foge da luta dando soluções fáceis ou mágicas para seus personagens, ainda que a mágica – com a presença sinistra de Merlin de um lado e de Morgana le Fay do outro – seja elemento ativo na história.

Com isso, em pleno começo da década de 80, Barr escreve uma obra muitos anos a frente de seu tempo, algo que talvez nem hoje outra editora – ou mesmo a DC Comics – tivesse a coragem de publicar dessa mesma forma. Afinal, Barr não se esconde atrás de violência gráfica ou se aproveita de artifícios de marketing para fazer o que faz. Ele apenas faz e a carta branca da DC na época merece as maiores comendas. E, para aqueles mais, digamos, tradicionalistas, que torcem o nariz para qualquer tipo de modificação em seus personagens favoritos, uma coisa é certa: a alma das lendas arturianas se manteve intacta em Camelot 3000. Barr soube inovar respeitando, mudar radicalmente mantendo os princípios. E isso é algo particularmente difícil com uma lenda tão arraigada no imaginário popular quanto a do Rei Arthur e companhia.

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As capas americanas dos seis últimos números.

Brian Bolland, por sua vez, sentiu-se livre para criar. Ainda que seus traços, sob a ótica atual, possam ser vistos como antiquados (mas isso se dá muito mais pelas cores de Tatjana Wood do que pelo desenho de Bolland), a grande verdade é que ele soube recriar cada cavaleiro da Távola Redonda e mais seu rei e rainha de maneira atemporal, que nos remete ao passado sem que esqueçamos que estamos no futuro. Ele não arrisca – e exagera – com o Rei Arthur, claro, que acaba sendo o personagem mais simplista da narrativa, mas o que ele economiza nesse ponto, ele esbanja com Merlin, Morgana, Modred, Percival e Tristan.

E é interessante notar que Barr é americano e trabalhou nos EUA, enquanto que Bolland é britânico e trabalhou a partir de seus país natal. A distância transoceânica era muito maior em um mundo pré-internet, pelo que Barr trabalhou com roteiros completos, indo muito além do mero diálogo e descrição de cenas, permitindo que Bolland capturasse no lápis todos os detalhes da imaginação do roteirista, mas fazendo uma generosa infusão de suas próprias características como artista, com traços fortes, bem definidos e um vasto uso de meias páginas e páginas inteiras, com quadros sangrando um para o outro para o máximo efeito dramático.

Camelot 3000 é um dos grandes exemplos de maxisséries de uma época em que elas não eram nada comuns. O “único e eterno rei”, se ele um dia existiu de alguma forma, certamente ficaria feliz com o resultado.

Camelot 3000 (Idem, EUA – 1982/5)
Roteiro: Mike W. Barr
Arte: Brian Bolland
Arte-final: Bruce Patterson, Terry Austin, Dick Giordano
Cores: Tatjana Wood
Letras: John Costanza
Editora (nos EUA): DC Comics
Data original da lançamento: dezembro de 1982 a abril de 1985 (maxi-série em 12 edições), outubro de 1997 (encadernado capa cartonada), dezembro de 2008 (encadernado capa dura)
Editoras (no Brasil): Editora Abril, Mythos Editora, Panini Comics
Datas de lançamento no Brasil: entre agosto de 1984 e outubro de 1985 (pela Editora Abril, nos mixes Batman e SuperAmigos), entre setembro e dezembro de 1988 (pela Editora Abril, em revista própria em quatro edições), em 2005 (em volume único pela Mythos Editora), em setembro de 2010 (em encadernado capa dura pela Panini Comics)
Páginas: 320

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