Dream of silver screen quotations
And if you want these kind of dreams
It’s Californication
Red Hot Chilli Peppers, ou para os íntimos, RHCP, foi uma banda que demorou para se encontrar, não necessariamente por falta de vontade, mas porque em sua proposta estilística inicial, ela nunca se demonstrou tão “talentosa” a ponto de fazer a diferença no amplo universo musical onde reside suas principais influências. Pelo menos ela precisou mudar muito até o seu ápice, em Californication.
Recapitulando um pouco da história, voltamos aos três primeiros álbuns, que até continham personalidade, um caráter único ao mesclar uma sonoridade tipicamente punk (ou pós-punk) com lapsos puxados para o funk/soul e inserções eventuais de guitarras do hard rock ou rítmica rimada do rap/hip-hop, mas não eram bons discos. Era uma sonoridade direcionada para um nicho muito específico de ouvintes e a banda estava ali como mais uma dentre tantas outras bandas oitentistas que continham essa experimentação aleatória de gêneros a ser consolidada na década seguinte como rock alternativo. Foi somente no seu quarto álbum, intitulado Mother’s Milk, que RHCP começava a furar sua própria bolha, ao apostar em algo mais sóbrio nas canções isoladas, a mistura maluca de gêneros ganhava uma unidade coerente. O som caloroso deixava de ser somente barulhento e desenvolvia uma vistosidade (ou continha potencial para se tornar vistoso, como demonstra a excelente adaptação deles para Higher Ground, de Stevie Wonder).
Nesse sentido, dá para dizer que seu verdadeiro primeiro álbum deles é Blood Sugar Sex Magik, pois este traz o som dos anteriores amadurecido e transformado por uma imposição maior dessa cadência rítmica introspectiva que, consequentemente, trouxe os primeiros hits ao grupo – especialmente Under the Bridge, a primeira grande obra-prima da banda. Tanto que, com seu o sucesso e influência, o álbum seguinte, One Minute, apostou quase completamente nessa vertente mais calma, não sendo bem aceito pelo seu nicho, tampouco comunicativo com o novo público adquirido com a popularidade, por soar justamente calmo demais para a essência da banda, fazendo parecer que eles não acreditavam no som que estavam fazendo.
Assim, somente no sétimo disco de estúdio, Red Hot atingiu o equilíbrio adequado da sua sonoridade, unindo a velocidade ainda mais amadurecida instrumentalmente do passado funk-punk com o intimismo espirituoso do rock alternativo, já consolidado neste final dos anos 90. A abertura com Arround the World sintetiza essa mistura logo de cara, com um início funk arrebatadoramente enérgico destacando a fusão do baixo absurdo de Flea em harmonia (presente em todo o álbum) com riffs pesados de John Frusciante e as batidas precisas de Chad Smith para alavancar a chamada vocal arrepiante de Anthony Kiedis, depois quebrando a rítmica no refrão para uma semi-balada reconfortante com um clima de verão praieiro tipicamente road-music.
A partir daí as músicas vão se alternando entre um tom mais puxado para o melódico e/ou com uma versatilidade exemplar, construindo liricamente diferentes abordagens para enfatizar o refrão como destaque primordial, sem que sua incessante repetição fique enjoativa. A quantidade de faixas marcantes em Californication é reflexo puro desse prisma de efusão e reforço de uma mesma estrofe escalonando o timbre plurilateral de Anthony conforme a crescente de intensidade emocional da música. Todos singles grudentos do disco conseguem ser extremamente viciantes por conta dessa estruturação enfática sobre o que querem dizer em seus refrãos. Contudo, apesar das letras simples a priori, existe um mantra temático circundando-as e que faz alusão direta a diversas experiências pessoais de seus intrigantes, que já passaram pelo mundo das drogas e da depressão – mesmo que sonoramente o álbum respire um clima de descontração ensolarada, quase como Hotel California, do Eagles.
O suposto contraste da forma leve e conteúdo denso/pesado é proposital, traçando reflexões que formam uma geração cada vez mais intelectualizada com os males da libertinagem e estejam abertas a elaborar uma visão particular e crítica do que lhe circunda culturalmente. O icônico autointitulado do disco, por exemplo, é uma grande sátira à indústria artística (não só musical, como também cinematográfica) e sua busca incessante e apelativa pela fama, disfarçada em um passeio pop nostálgico do universo californiano. Californication é uma música tão absurda que funciona perfeitamente como representações de duas realidades: a sarcástica/crítica sobre o estilo de vida americano da proposta, evidenciada espontaneamente com a suavidade da condução musical que mostra a natureza falsa sobre a idealização dos costumes capitais; e a ilusória, olhando principalmente na reprodução imagética do que está presente na letra ter virado uma febre naquele inesquecível videoclipe em formato de um jogo de videogame.
A fantástica Scar Tissue é outra canção carregada de dubiedade, ao falar incertamente de temas pesados com um instrumental plenamente relaxante. A letra nunca deixando claro se é sobre suicídio ou simplesmente uma jornada de recaída ou se o ato de se deixar levar (seja pela morte, seja pelas drogas) é libertador ou puramente egoísta. Diferente de Otherside, que apesar de ter margem para interpretações de prisões psicológicas pessoais, funciona como um simulacro explícito de um processo de overdose, numa alusão direta, mas sensível, ao ex-guitarrista e um dos fundadores da banda, Hillel Slovak, que morreu de uma overdose por heroína em 1988. Os versos são diretos, crescentemente mais intensos até o apoteótico solo de Frusciante (nem sei qual é melhor, esse ou o de Californication) acompanhado de backings capazes de exonerar almas.
Não tem jeito, essas três músicas são não só as mais representativas do disco (sendo Otherside, possivelmente minha favorita ou a que mais marcou minha infanto-juventude), como as mais significativas da carreira da banda até hoje. Se tivesse somente as três e o restante das demais 12 canções apenas razoáveis, Californication ainda seria plenamente célebre do jeito que é. Contudo, ainda temos a viciante Get on Top, a épica esperançosa Savior e o simpático folk (uma verdadeira road-music sobre a vida) Road Trippin’ como hits dignos do hall das melhores de RHCP – fora a já comentada Around the World. Dentre outras ótimas músicas como a persuasiva e quase surrealista Parallel Universe’, a belíssima e acústica Porcelain, a romântica This Velvet Glove, a carismática grunge Emit Remmus e a psicodélica Purple Stain para completar um repertório invejável, que poucos álbuns na história podem exibir. E mesmo que as canções não citadas – no caso: Easily, I Like Dirt e Right on Time, que não cheguem a ser tão boas pela velocidade que remete à origem problemática da banda –, não tiram a extrema consistência do álbum.
A trajetória de RHCP é a prova de que a genialidade nem sempre virá como matéria bruta e que ela pode ser encontrada com o tempo (15 anos é bastante tempo) de lapidação para uma identidade, sem que essa necessariamente precise se encontrar naquilo que é desejado fazer ou naquilo que somos bons em fazer, mas no conjunto proporcional dessas duas premissas. Californication foi esse disco irreverente que proporcionou um encontro de personalidade e transformação completa de uma banda, dando aval a um marco musical muito maior do que ela era. Uma obra-prima que ajudou a fechar o século com uma leveza esperançosa no incerto futuro da próxima juventude.
Aumenta!: Californication, Scar Tissue, Around the World
Diminui!: Right on Time
Minha Canção Favorita do álbum!: Otherside
Californication
Artista: Red Hot Chili Peppers
País: Estados Unidos
Lançamento: 8 de junho de 1999
Gravadora: Warnes Bros
Estilo: Rock Alternativo, Funk Rock