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Crítica | Caiçara (1950)

Belo retrato de uma mulher deslocada de sua zona de conforto.

por César Barzine
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Distante de qualquer tentativa de evocar um cinema glamouroso sendo o oposto do que poderia pensar o público ao tomar conhecimento de que se trata de uma produção da Vera Cruz –, Caiçara é uma obra que aproxima o homem da natureza através de caminhos que demonstram a ambiguidade entre o conforto e a perdição. A primeira sequência do filme é completamente deslocada de seu restante, sustentando uma ambientação urbana e formal que logo se desconcerta. Primeiro, presenciamos uma escola, feiras, jovens uniformizadas e um médico. Em seguida, o que temos por todo lado são trabalhadores braçais bem mais velhos, um vilarejo árido sob sol escaldante e uma população com seus ritos e tendências enraizados naquela terra.

O personagem Manuel não acabou de se casar com a grande paixão de sua vida, mas sim fez um negócio. E a sua noiva, Marina, é o outro polo deste implícito contrato em que o homem compra a esposa ideal (jovem, bela e comportada) pelo preço de aceitar sua doença hereditária (lepra). Em troca, Marina recebe o acolhimento de ter um homem, uma casa e um matrimônio como forma de aproveitar a efemeridade da juventude aparentemente sadia para já solidificar sua vida social. O próximo passo é saltar para o local onde vive seu marido, e do qual será seu mais novo aconchego: uma pequena comunidade bem simples, com casas artesanais e distantes entre si. 

A dinâmica desse tipo de região é expressa pelo senso comunitário do qual todos os habitantes estão interligados. Isso desde um simples cumprimento até a multidão de pessoas aglomeradas perante o espanto de alguma morte – o que leva a obscura hipótese de que Marina atraía má sorte. Seu estrangeirismo, acompanhado de sua beleza e apatia, acentuam a distância dela com os demais moradores. O que tem como resultado a aproximação indesejada de homens abjetos que a rodeiam, ofuscando seus passos e, até mesmo, invadindo a sua residência.

Aos olhos daqueles sujeitos, rudes de variadas formas, Marina passa a ser o objeto de desejo perfeito. A moça consegue atingir um grau de sensualidade mesmo sem apelar a algo mais caricato. Suas roupas simples, sua posição de doméstica e o seu comportamento exemplar constituem, paradoxalmente, uma mulher que é, a cada momento, foco de olhares e ataques que apresentam a sua vulnerabilidade naquele espaço do qual esperava conforto e segurança para viver uma vida normal como esposa e dona de casa. A expectativa preenchida por um ideal conservador e modesto se contrapõe às reações cheias de malícia, violência e crendices vagas.

O rústico é o elemento central em Caiçara, presente do ambiente principal às pessoas que lá estão inseridas, o macrocosmo daquela comunidade se joga contra o microcosmo de Marina, tendo até mesmo o seu marido do lado oposto. O único desejo desta recém-casada era viver de forma cômoda e sem problemas, o que levou ela a escolher o caminho mais fácil e insípido para se estabilizar. O problema é que seu marido não nutre do mesmo desejo: ele quer uma esposa de carne e osso que não seja apenas um objeto passivo. O silêncio dela o atormenta. “Não fala, não ri, não reclama, não chora!“, diz ele. Marina é “direita” demais para qualquer homem, dotada de uma inércia que desonra a reputação de Manuel mais do que alguma promiscuidade.

Por isso mesmo, os homens que lá convivem observam a sua personalidade discreta, em que a beleza e a quietude da jovem provocam, ao mesmo tempo, a mera atração física e uma ardente aura de mistério em volta dela. “Uma beleza dessas sendo desperdiçada!“, diz um senhor após um penetrante olhar. Porém, para José (sócio de Manuel), o desejo acaba se potencializando, e passa a significar poder e integridade; ter Marina vira uma questão de honra. José, que já dividia a sua empresa com Manuel, agora tem mais um bem a ser cobiçado. Tal objetivo se torna ainda mais necessário e desafiador quando Marina se defende dele na cena em que ela é atacada. Assim, tanto o marido quanto a esposa representam oposições ao seu ego; restando, para ele, destruir o primeiro e tomar posse da segunda.

O convívio social para Marina se torna intimidador, trata-se de um problema completamente passivo de acontecer naquele tipo de ambiente, onde todos os moradores são vizinhos, e cada ação parece acontecer a poucos metros. Daí nasce o elemento rústico primário em Caiçara, criando um terreno que faz brotar certa simplicidade que é típica de nosso país. A feira, a pesca, a roda de música, o bar, o jogo de futebol no rádio, os afazeres domésticos; coisas que poderiam soar triviais isoladamente, mas que, aqui, criam uma unidade não apenas fílmica, mas também geográfica e social. É o Brasil do interior sendo sintetizado através de uma visão não muito festiva, mas ainda assim viva em sua essência. Em Rio, 40 Graus, Nelson Pereira dos Santos, por meio de sua arquitetura sociológica, descarregava todo o brilho de uma metrópole; já em Caiçara, há o mesmo com uma região do interior. Mas neste caso, devido aos limites de extensão do território, cabe aos três diretores (Adolfo Celi, Tom Payne, John Waterhouse) aproveitarem a narrativa que evita múltiplas tramas paralelas e exercer um olhar mais minucioso da história e seus personagens.

O litoral do Brasil numa região pobre como palco da desolação jovial e feminina já foi representado duas vezes no cinema brasileiro dos anos 1950: com Caiçara, temos uma mulher do meio urbano que buscou se estabelecer e repousar naquela terra; já com Alberto Cavalcanti em O Canto do Mar, a protagonista é dominada pelo desejo de sair daquele mundo e explorar outros caminhos. Uma se introduz, a outra busca se deslocar; e mesmo assim, dos dois lados, há os frequentes desarranjos entre elas e o espaço em que convivem. O silêncio de uma e o monólogo da outra expressam inquietações semelhantes. Mas nem só de angústia se move a vida de Marina, e graças à reviravolta ocorrida na metade da obra, ela agora poderá revigorar sua alma e, realmente, construir um horizonte para seu futuro. O novo romance que surge no filme, também significa um novo obstáculo para José. Assim, a trama se torna mais engenhosa e intrigante. Perde o seu tom intimista e ganha adrenalina nos desdobramentos que se retroalimentam sob aquela disputa. Romance e ação passam a dominar o longa, se entregando com enorme fervor ao cinema de gênero.

O mar acaba sendo o grande protagonista desta segunda metade, o que já fica nítido no momento que produz essa ruptura entre as duas partes: o primeiro assassinato provocado em meio às águas é o que desencadeia a total renovação da trama. Essa junção de violência ocorrida no mar se repete ainda mais duas vezes como modo de progredir as intrigas do trio que se formou. Porém, nestes dois casos, os embates ocorrem em consonância ao ritmo e à tensão recém acolhida pelo filme. Por fim, apesar de ainda haver a ênfase dos costumes populares – acentuada aqui através da montagem paralela que expõe os ritos da religião local –, o rústico diminui o seu papel em prol de uma abordagem mais hollywoodiana. E o arco de Marina se fecha justamente sob essa mesma lógica: com a aniquilação de seu algoz, o início de uma paixão, e a (real) possibilidade de construir uma nova vida.

Caiçara – Brasil, 1950
Direção: Adolfo Celi, Tom Payne, John Waterhouse
Roteiro: Alberto Cavalcanti, Adolfo Celi, Afonso Schmidt, Ruggero Jacobbi, Gustavo Nonnenberg
Elenco: Eliane Lage, Carlos Vergueiro, Mário Sérgio, Abilio Pereira de Almeida, Adolfo Celi, Maria Joaquina da Rocha, Oswaldo Eugênio, Alice Domingues, Tetsunosuke Arima, Ricardo Campos, Zilda Barbosa
Duração: 92 minutos

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