Café com Deus Pai — em qualquer uma de suas versões — é um fenômeno paradoxal: um devocional muitíssimo popular e campeão de vendas, que promete renovação espiritual, mas que, sob uma análise estrutural e teológica, revela-se mais próximo de um manual de autoajuda disfarçado de rasa filosofia, trazendo parágrafos de efeito e citações de versículos curvados à força para caberem na forma daquilo que o pastor e autor Júnior Rostirola chama de (ou entende por) cristianismo. Através de uma linguagem acessível (ponto positivo para um devocional que se quer popular), o autor rascunha vagas reflexões diárias que, embora toquem em questões reais e falem de maneira direta a qualquer indivíduo (outro ponto positivo), falha em confrontar as complexidades da fé, optando por um texto que privilegia conforto emocional, palavras de reafirmação e conquistas terrenas.
Não dá para ler a obra sem ver evidentes as regras da teologia da prosperidade, corrente que permeia o livro de maneira estrutural: como disse antes, o foco do autor é levantar a autoestima do leitor através de citações bíblicas freestyle e condicionamento a uma ideia de Deus-Negociante, procurado em doses diárias com um padrão que chega a ser engraçado e, em resumo, soa mais ou menos assim: “oi Deus, estou aqui de novo. Sou grato por tudo. Hoje eu vim te pedir mais uma coisinha e sei que serei atendido o mais rápido possível, porque eu mereço…”. Promessas de “prosperidade divina” e “superação de desafios” são apresentadas como garantias divinas fixas e incondicionais, ignorando tantas narrativas bíblicas que qualquer novo-convertido saberia identificar e estranhar. Ao associar a fé de maneira tão voraz a resultados materiais, Rostirola não apenas distorce o evangelho, mas reforça uma lógica mercantilista onde Deus vira um provedor condicionado à positividade do fiel.
A descontextualização da Bíblia é que agrava o problema. Frases como “confie em Deus mesmo quando não entende“, são usadas como amuletos motivacionais, desconsiderando contextos históricos e literários. Por exemplo, a ênfase em “sonhos e realizações” apoia-se em passagens como Jeremias 29:11 (“planos de prosperidade“), mas omite que a promessa original foi dirigida aos exilados na Babilônia, não a indivíduos em busca de sucesso pessoal. Essa prática, comum em círculos pragmáticos, transforma a Bíblia num manual de frases-feitas, esvaziando-a de seu caráter narrativo e, mais importante, divinamente transformador. A omissão de temas centrais do cristianismo expõe uma visão geral bastante truncada do autor. Enquanto discorre sobre gratidão e paz interior, ele silencia sobre a radicalidade do arrependimento ou a soberania de Deus diante do mal. A ausência de reflexões sobre a imagem de Deus ou a tensão entre graça e justiça resulta em uma espiritualidade que mais se assemelha a um spa teórico do que a um chamado à transformação ética; individual e comunitária.
A já citada linguagem acessível, inicialmente um trunfo do livro, oculta a superficialidade da abordagem. Metáforas como “Deus deseja tomar café com você” soam acolhedoras, mas banalizam a transcendência divina, reduzindo-a a um parceiro de conversas matinais com papos de um único tom: “pai, dai a nós”. A falta de densidade teológica, aqui, é mascarada por histórias pessoais e exemplos do cotidiano, estratégia que, embora eficaz para identificação imediata do leitor, não substitui a necessidade de confrontar paradoxos da fé, como o sofrimento dos inocentes ou o silêncio de Deus em momentos de crise, coisas ignoradas num devocional onde o que temos são doses cavalares de açúcar divino e confetes de acumulação.
Repetindo parágrafos sobre amor, esperança condicional e gratidão interesseira, a obra estagna o leitor num loop de conforto e vícios de prática cristã. Enquanto obras clássicas de devoção guiam o leitor por jornadas de crise e redenção, de esperança, fé, lutas e vitórias, Rostirola oferece certezas reconfortantes que não progridem para nada, basicamente caçando crentes mimados e entendedores do cristianismo como um meio de network, dinheiro, bolha ideológica e tradição engessada. O individualismo exacerbado coroa essa construção. A ênfase em conquistas e a exposição vaga de um “relacionamento íntimo com Deus” (algo que o devocional sequer consegue aludir de maneira honesta) ignoram o caráter comunitário e missional do cristianismo. Não há espaço para a ética do cuidar do órfão, da viúva, dos necessitados, nem para o desafio de confrontar estruturas de injustiça e acolher, assistir e ensinar quem precisa. A espiritualidade de Café com Deus Pai é um bunker para “escolhidos especiais”, não um chamado à transformação de dentro e de fora — o que é muito estranho para um livro dentro de um gênero teológico que tem como proposta reforçar a ideia de que o cristão é “o sal da Terra e a luz do mundo”, não um 4 de ouros fingidor de que o mundo é rosa e que as tempestades são apenas um capricho que só atingem aqueles que “estão com a mente no lugar errado”.
Café com Deus Pai reflete menos uma busca autêntica pelo divino e mais os sintomas de uma fé adaptada ao consumismo espiritual do século XXI. Um “amém, igreja?” ao capitalismo e ao bem-estar pleno, com leves toques de orações e direcionamento do coração a Deus… mas só como meio de pedir algo em troca. Suas páginas, embora aromatizadas com boas intenções, oferecem um evangelho torrado e diluído, onde o “amai ao próximo como a ti mesmo e a Deus sobre todas as coisas” é substituído pelo coaching existencial e pelo incentivo a selfies e reflexões sobre o ter, o pedir… ainda mais. A obra deixa um rastro de perguntas não respondidas e muita sede espiritual — prova de que, às vezes, o café mais reconfortante é aquele que nos mantém acordados para as complexidades da fé, da relação com Deus e com nossos irmãos; não aquele que nos adormece em ilusões doces e aromas consoladores, tornando Deus uma máquina expressa de bênçãos, e o fiel, um solicitador compulsivo.
Café com Deus Pai (Brasil, 2022)
Autor: Júnior Rostirola
Editora: Vida
424 páginas