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Crítica | Cada Um por Si e Deus contra Todos – Memórias, de Werner Herzog

A filosofia de vida de um grande cineasta.

por Ritter Fan
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Reutilizando o título original alemão de seu filme O Enigma de Kaspar Hauser, por sua vez extraído do longa brasileiro Macunaíma, Werner Herzog finalmente decidiu escrever e lançar sua autobiografia, mesmo depois de publicar livros que, se vistos em conjunto, fornecem uma bela visão desse grande produtor, diretor e roteirista bávaro que ocasionalmente também é ator. No alto de seus mais de 80 anos, com pelo menos seis décadas dedicadas ao Cinema tanto de ficção quanto de não ficção, Cada Um por Si e Deus contra Todos é exatamente o tipo de obra que só poderia mesmo vir de sua mente sempre fervilhante e que basicamente não liga para o mainstream de produções audiovisuais, preferindo sempre colocar nas telonas aquilo que ele sente que merece sua atenção.

E o que eu quero dizer com “exatamente o tipo de obra que só poderia vir de sua mente sempre fervilhante”? Bem, minha resposta para isso pode ser ilustrada pela fotografia de Herzog escolhida como capa do livro e que também usei aqui como imagem da crítica. O que vemos ali a não ser um homem comum, com o pouco cabelo que tem todo descabelado, com barba por fazer, de aparência cansada e vestido com roupa de amianto durante as filmagens de seu documentário sobre vulcões  Visita ao Inferno?  Qualquer celebridade padrão jamais usaria uma foto dessas, tão terrena, tão humana e tão despreocupada com  o que a sociedade em geral espera dela. Muito ao contrário, aqui está alguém que não tem vergonha alguma em mostrar exatamente quem ele é, o que inclui o peso da idade, e que ao mesmo tempo nos traz pistas sobre sua dedicação ao trabalho e ao tipo de obra a que se dedica, além de prometer algo em seu prólogo que ele acaba realmente fazendo no final de seu livro que me deixou ao mesmo tempo enfurecido e extasiado.

O título parece celebrar o individualismo, mas Herzog, logo de início, dissipa essa ideia e deixa muito evidente o quanto sua vida pessoal e profissional dependeu e depende das mulheres com quem se relacionou, da família que tem e dos profissionais que o cercaram e ainda cercam em seus projetos variados pelo mundo. O que ele queria era mesmo dar uma nova chance a essa frase que chamou sua atenção quando assistiu o longa brasileiro em questão exibido na Alemanha e cujo conceito ele não conseguiu propagar nos títulos internacionais de seu próprio filme. Por outro lado, sua autobiografia deixa evidente que ele é, fundamentalmente, um ser privado e cujas próprias ideias ele cultiva livremente, sem esperar a bênção de ninguém e sem se conformar às “regras” não ditas sobre como e em que circunstâncias fazer um filme. Portanto, Herzog é fundamentalmente um cineasta solitário, por assim dizer, que trilha o seu próprio caminho, de seu próprio jeito, sem ligar para o que pensam dele.

A autobiografia, dessa forma, é um natural reflexo de como o cineasta é. Estruturalmente, há um semblante de abordagem cronológica que serve de tênue linha mestra, mas que ele não se importa em desobedecer, por diversas vezes escrevendo como em fluxo de consciência, entremeando fatos com suas impressões e visões sobre eles e continuando de maneira inclemente, sem esperar que o leitor se aclimate ao estilo. Trata-se de uma versão mais completa de material literário que ele mesmo produzira antes, inclusive o profundamente pessoal e espiritual Caminhando no Gelo, e o sensacionalmente lírico e angustiante O Crepúsculo do Mundo, pelo que, especialmente àqueles que não tiveram oportunidade de se deparar com seu estilo de escrita antes, será necessária uma curva de aclimatação.

E justamente pelo seu livro ser muito mais uma coleção de pensamentos de Herzog sobre sua vida e sua obra, não se deve esperar análises profundas de seus filmes. Sim, ele fala de vários, inclusive daqueles que jamais foram feitos, mas Cada Um por Si e Deus contra Todos não tem como razão de ser um cineasta falando de sua técnica ou de conflitos em produções. Sem dúvida há comentários nessa linha, pois seria impossível não tê-los em razão do quanto a obra se confunde com seu autor, mas, aqui, o objetivo de Herzog é falar de sua vida, começando com confissões que chegam a surpreender sobre sua violência inata, que o levou uma vez a atacar o irmão com uma faca e o quanto seu caráter é ditado por um esforço extremo de disciplina e chegando às suas inspirações principais, notadamente as expedições de seu avô arqueólogo para escavar sítios em Kos, na Grécia e assustadora – mas temporária – filiação de seus pais ao Partido Nazista.

Da mesma forma, deixando já evidente seu estilo de filmagem de guerrilha que sempre marcou e ainda marca sua filmografia, ele relembra a primeira câmera de filmar que TV, resultado de uma “desapropriação” que resolveu fazer de material da faculdade onde estudava ou fingia que estudava. E é claro que ele aborda suas grandes amizades cinematográficas, seja com Walter Saxer a quem ele reputa ser o verdadeiro responsável pelo transporte das embarcações em Fitzcarraldo e com quem ele acabou brigando anos depois, ou, claro, seu “muso” Klaus Kinski, um homem que ele não se furta em descrever como um gênio completamente desequilibrado, capaz de ameaçar produções inteiras com suas explosões de raiva, além de seu irmão Lucki, que salvou muitos de seus filmes tanto com sua capacidade impressionante de obter dinheiro das fontes menos prováveis, como literalmente localizar rolos insubstituíveis que foram criminosamente extraviados por uma transportadora.

Mas as informações anedotárias sobre suas produções são tira-gostos para uma narrativa pessoal, carregada de lirismo e de exemplos de suas crenças e filosofias, além do valor que ele dá a suas amizades e o quanto seus fracassos, suas falhas e aquilo que ele não conseguiu fazer (pelo menos não até agora) fazem parte daquilo que ele é. De certa maneira, é até possível afirmar que Herzog tem plena consciência de que é genial e não tem nenhum problema em tangenciar essa afirmação naquilo que ele coloca em seu texto, como por exemplo quando ele se debruça sobre desafios científicos e quando ele esmiúça teorias várias que ele tem que, anos depois, provaram-se verdadeiras de uma forma ou de outra. Em outras palavras, ele faz aquele uso “malandro” de falsa modéstia, mas sem parecer exatamente esnobe, mas sim, talvez, excêntrico ao ponto de ser possível imaginá-lo com um leve sorrido de canto de rosto ao escrever o que escreve.

E, sendo muito honesto, isso torna a leitura ainda mais interessante, ainda mais honesto. Não vemos, em momento algum, o Herzog arrumadinho, medindo suas palavras, mas sim o Herzog claramente ciente de sua capacidade, inclusive de transmitir seus pensamentos com palavras, mesmo arriscando-se a revelar-se antipático a leitores mais suscetíveis. Mas é aquilo: para mim, autobiografias de celebridades, que normalmente encaro como um exercício de ego, são mais interessantes na medida em que as papas na língua são deixadas de lado e a verdade – ou pelo menos a verdade na visão do autor – vem à tona sem rodeios e sem medo de magoar terceiros. E Herzog é bem assim em sua obra, cabendo ao leitor entendê-lo e, ato contínuo, apreciá-lo ou, claro, repudiá-lo.

Cada Um por Si e Deus contra Todos é um tesouro autobiográfico de um dos mais interessantes – e melhores – cineastas independentes vivos que é capaz de abordar uma pluralidade quase sem precedentes de assuntos com suas obras. Não é algo que cinéfilos devam ler em razão de suas obras, mas sim pelo homem por trás delas. E olha, a leitura vale cada palavra, cada frase, cada parágrafo e cada página.

Cada Um por Si e Deus contra Todos – Memórias (Jeder für Sich und Gott gegen Alle: Erinnerungen – 2023)
Autor: Werner Herzog
Editoras originais: Carl Hanser Verlag GmbH & Co. KG (Alemanha), Penguin Press (EUA)
Datas de lançamento: 22 de agosto de 2023 (Alemanha), 10 de outubro de 2023 (EUA)
Tradução (do alemão para o inglês): Michael Hofmann
Editora no Brasil: Editora Todavia
Data de publicação no Brasil: 07 de junho de 2024
Tradução para o português: Sonali Bertuol
Páginas: 368

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